domingo, 9 de junho de 2013

Sorria (ou sorry?), você está na Bahia



Os baianocêntricos de plantão podem me crucificar, eu sou pecador mesmo e não tenho medo de blasfemar contra uma aura de intocável que governantes, cidadãos e turistas pregam a favor de Salvador. Falar contra a cidade, é falar para esse mesmo grupo que parece estar numa bolha de deslumbramento de um passado monumentalizado e pelourínico, como se fosse a única e possível auto-imagem a ser preservada de Salvador.

Estou farto desta palhaçada midiática e institucional de que tudo que acontece diferente, mesmo o mais bizarro, é "coisa da Bahia". É certo que toda a cidade tem seu jeito, Caymmi já cantava isso em relação a sua Bahia, mas a sua poemúsica hoje pouco se materializa no cotidiano, porque, penso eu, não souberam ler nas entrelinhas da canção que a beleza desta terra está nas pessoas, e elas estão sendo maltratadas, que por sua vez maltratam o seu lugar, os visitantes, e a nós mesmos, porque não tem ninguém que reclame, já que se resolve com pão e circo. 

Além de tudo ser caro nessa cidade, vem a Fifa cobrar um absurdo por um cachorro-quente, R$ 8,00, o mesmo será o preço de um acarajé com camarão. O Fantástico flagrou o atendimento aos turistas nessa temporada de grandes eventos na cidade. Recepcionista de hotéis que só falam baianês com sotaque portunhol ou inglês macarrônico. Acho que as operadoras que vendem pacotes bonitinhos para o turista deveriam ser punidas por propaganda enganosa, com devolução do dinheiro. 

Quando vou buscar alguém no aeroporto, eu advirto logo, "Acorde, Alice, porque depois que passarmos pelo bambuzal, a Bahia das Maravilhas acaba". Aliás, não precisa nem sair, no aeroporto o turista já sente na pele o que nós próprios sentimos diariamente. Primeiro, se você chegar de madrugada e tiver viajado de Gol, passa fome, porque em um aeroporto que é classificado como "internacional", não tem um restaurante ou lanchonete aberto 24 horas; segundo, taxistas brigando em sua frente, às vezes aos tapas, empurrões e xingamentos, por uma corrida. Boas-vindas já com vontade de voltar para casa no próximo voo; terceiro, elevadores e escadas rolantes sempre em manutenção. Bem, eu vi e vivi isso tudo. 

Os serviços prestados à população, em geral, é de espantar, no mínimo, um turista dinamarquês. O que ele deve pensar do nosso sistema de transporte público? Gente, o que é aquela Estação da Lapa? A plataforma subterrânea é tão dantesca (mau cheiro, goteiras, escuridão, insegurança, sujeira), que nem os pedintes maltrapilhos ou os usuários zumbis de drogas se arriscam a transitar por ali. Aquilo é um submundo. Mas a Prefeitura insiste em alocar para lá as linhas de ônibus, sem falar nos próprios veículos, que são igualmente mal-cuidados. Em dia de calor, aquele monte de passageiros apertados, sem ar-condicionado, presos nos inúmeros engarrafamentos, é humilhante. Repito, hu-mi-lhan-te.

Todo dia um soteropolitano ciente de seus direitos denuncia um restaurante cuja alimentação vendida traz de brinde a degustação de um inseto asqueroso no prato. A (In)Vigilância Sanitária é um dos serviços mais falhos nessa cidade, onde qualquer cacete armado vende comida. Eu até como, mas cá para nós, não adianta ter fama da melhor feijoada, melhor acarajé, melhor mocotó, melhor sarapatel, melhor mingau, se esse regabofe todo não é fiscalizado. Dor de barriga não dá uma vez só não, e eu já tive várias. Quando o turista passa mal, abrem logo a boca dizendo que ele não está acostumado com o tempero baiano. Então, nós temos estômago de avestruz, pois não sentimos nada e achamos que o mal está na barriga dos outros?

O Senac, órgão que capacita mão-de-obra para o comércio e prestação de serviços, deveria ser denunciado pelo Ministério Público, porque a formação que ele oferece em seus cursos tem sido vergonhosa, pois os profissionais estão saindo despreparados para o atendimento. É claro, não são todos, mas todo mundo diz que fez curso no Senac e, em Salvador, o mal-atendimento é um outro aborrecimento que passamos. Não é raro o cliente nos restaurantes, por exemplo, ir até o balcão chamar alguém para atendê-lo, depois de o garçom jogar, literalmente isso, jogar o cardápio na mesa e sumir. E quando você não paga 10% pelo (mau) serviço faz cara feia. É tão bom quando em um restaurante, desde o segurança da porta até o ajudante de cozinha, sai tudo certinho. Ah, principalmente quando o cafezinho está quente e é cortesia da casa. Isso fideliza o cliente e ele indica até para o Papa Francisco. 

Aqui na minha rua, todo dia o gari varre. Às 6h30, ele já começa a limpar o quarteirão. Às 18h, tudo está sujo. E não falta onde depositar o lixo produzido neste período. Caixas e papeleiras são bem distribuídas, mesmo assim, moradores e passantes jogam no chão seus restos. De minha varanda, já presenciei (reclamei) diversos  homens, jovens e idosos, que sem cerimônia, ou pompa e circunstância, urinam como estivessem regando jardim. Fez bem Danilo Gentilli advertir o grupo mexicano Maná sobre o fedor de urina que tem Salvador. Fez mal o mesmo apresentador pedir desculpas pela verdade que não queremos ouvir. Preferimos continuar cheirando mijo fresco ou envelhecido, porque isso só se vê na Bahia. Lembro-me que anos atrás a Prefeitura teve que recuperar a base de um monumento ou viaduto porque de tanto urinarem as ferragens estavam oxidadas. Acreditem!

Para terminar esse post de lamentações, eu volto à Arena Fonte Nova. Estava eu saindo de casa para pedalar (ou melhor, me arriscar a pedalar nessa cidade de trânsito assassino), quando um grupo de três homens e uma mulher, identificados com crachá, me chamaram para perguntar se eu estava satisfeito com as obras de mobilidade que a Conder, órgão do Governo do Estado, estava realizando para as Copas na minha rua e adjacências. Eu, que até então não estava interessado na obra, passei a fiscalizar. Implacavelmente. 

Sugeri mudanças no projeto das calçadas, com a colocação de piquetes para evitar que carros estacionassem  sobre a calçada do Convento do Desterro, já ampliada e com pista tátil para deficientes visuais. Assim, acataram. Mas como nem tudo são flores. A mesma pista está incompleta em alguns trechos, inclusive causando acidente a um cego que transita na área, por ter perto uma escola estadual de atendimento especial a esse público. A rampa para cadeirantes está mais baixa do que a rua, o que impede de o deficiente físico sozinho passar de um lado a outro. O ponto de ônibus foi alterado com a abertura de uma baia exclusiva, mas os motoristas não param no lugar certo, nem tem abrigo contra chuva e sol. Reclamei, e foi designada uma equipe de cinco pessoas para averiguar a minha queixa: uma assistente social, uma assistente da assistente social, um técnico, um assistente do técnico e um fiscal de obras, que não foi acompanhado de seu assistente, pois faltou no dia.  

A desculpa para essas obras não concluídas foi a famigerada falta de verba. Prometeram até o ano que vem  terminar. É esse o legado que a Copa vai deixar para os moradores do bairro? Isso no plano mais localista possível, mas, e para Salvador? A Fifa vem, chupa todo o dinheiro dos baianos, obriga que se construa um novo estádio, que vira-mexe suas falhas aparecem, e depois dá bye bye dizendo que ajudou o nosso turismo. Mas como o futebol é ainda o ópio do povo, tudo por enquanto é só alegria. Quero ver quando o efeito da droga passar.



domingo, 21 de abril de 2013

Invenção e Memória: a construção narrativa de Lygia Fagundes Telles

Em homenagem aos 90 anos de Lygia Fagundes Telles, reproduzo artigo de minha autoria na Revista Tempo (2008), da Faculdade Metropolitana de Camaçari (FAMEC)


Lygia Fagundes Telles, 90, senhora de invenções e memórias literárias



   

Lygia Fagundes Telles, 85, é autora de romances e contos conhecidos da literatura brasileira contemporânea. Em mais de 60 anos de vida literária, a escritora paulista conquistou público e crítica com Ciranda de pedra, As meninas, As horas nuas (romances), As formigas, Venha ver o pôr-do-sol e Natal na barca (contos). Em Invenção e memória e Durante aquele estranho chá – perdidos e achados, Lygia consolida seu estilo límpido e fluido com a soma equilibrada de ficção e realidade.

Em Invenção e memória, lançado em 2000, ela revisita (e recria) fatos e momentos que viveu em diferentes fases de sua vida. Segundo a autora, a invenção e a memória são inseparáveis porque fazem parte de vasos comunicantes, de modo que a narrativa não pode ser construída sem a presença da memória, tampouco esta não pode ser evocada sem a linguagem. Nos quinze contos do livro, Lygia deixa entrever a troca incessante dessa alquimia, sem revelar ao leitor quantos gramas entraram de imaginação e verdade.

Considerado o primeiro livro de não-ficção de Lygia, Durante aquele estranho chá – perdidos e achados (2002), traz já no subtítulo uma referência ao cascavilhar das lembranças. Organizado pelo jornalista Suênio Campos de Lucena, o livro reúne crônicas, depoimentos e artigos dispersos em jornais e revistas, alguns até esquecidos pela escritora. A revisão desses textos ativou a memória da autora, que a fez se redescobrir de momentos afetivos, de tão vívidos e reais com que afloraram, o que deu ao livro um tom nostálgico, com leves pitadas de biografia.

Não sendo propriamente um livro de contos, gênero em que a escritora tem mais publicações, Durante aquele estranho chá mostra em algumas crônicas que os limites entre os dois gêneros são quase imperceptíveis, na medida em que ambos exploram elementos ficcionais coincidentes, em especial por serem narrativas curtas, com linguagem geralmente concentrada na ação do(s) personagem(ns). É ela mesma quem sugere isso, quando fala que proporciona ao leitor “um meio de conhecer Mário de Andrade, por exemplo, através da minha palavra.” Entendo que Lygia fala aqui em invenção, embora tenha tido o cuidado de não ir muito além do que aconteceu de fato, afirmando sempre que foram fatos reais. Lembrar é também narrar e narrar é expressar com singularidade uma experiência vivida. A palavra de Lygia, como já deu prova disso, não se alimenta apenas da realidade factual, mas também de uma realidade idealizada.

Perguntada sobre os recursos narrativos usados em Invenção e memória, Lygia Fagundes Teles respondeu: “A memória sempre esteve a serviço da invenção e a invenção a serviço da memória. Quando eu vou contar um fato, de repente estou inventando, acabo mentindo, mas não, não é bem mentira. Na verdade, eu floreio, estou dando ênfase àquilo que eu quero.” (TELLES, 2001, p.6) A partir dessa declaração, podem-se entrever desde já três pontos importantes a serem discutidos na ficção de Lygia: a representação (que realidade os contos narram?), intenção (quem os escreve?) e recepção (quem os lê?).

     O projeto de construção narrativa que a escritora desenhou para Invenção e memória parece definido, fechado, principalmente quando encontra uma resposta favorável de um tipo específico de leitor: o implícito. Neste caso, o autor implícito (ou narrador) mostra as trilhas pelas quais o seu correspondente no leitor (ou narratário) deverá seguir. É um pacto no qual são definidos, no texto, o papel do autor e do leitor reais. Há casos em que o leitor implícito não tem escolha diante da leitura, sua condição passa a ser de passividade e de alter ego ou de substituto do autor, porque é ele quem orienta. Por outro lado, o autor dá ao leitor possibilidades de movimento, porque pensa que se não tornar o texto atraente não será lido. Para Lygia, o “leitor gosta e aceita um livro na medida em que se transporta, em que se encontra no livro.” (apud BRAIT, 1998, p.81)  A correspondência desse autor com o leitor ideal constitui para alguns teóricos, como Umberto Eco, o jogo da ficção. Ele acredita que a norma básica numa obra de ficção é definida pela “suspensão da descrença”, em que o autor finge dizer a verdade, enquanto o leitor finge que aquilo que é narrado de fato aconteceu. Mas não é o que pensa Roland Barthes:

A imagem da literatura que se pode encontrar na cultura corrente está tiranicamente centralizada no autor, sua pessoa, sua história, seus gostos: a crítica consiste ainda, o mais das vezes, em dizer que a obra de Baudelaire é o fracasso do homem Baudelaire, a de Van Gogh é a loucura, a de Tchaikovski é o seu vício: a explicação da obra é sempre buscada do lado de quem a produziu. (BARTHES, 1988, p. 66)


Assim, o sentido intencional legitima o estatuto do autor na história literária e, por conseguinte, torna a crítica e a teoria inúteis, porque para interpretar o texto basta saber o que autor quer dizer. Longe de considerar a intenção como critério básico para explicar a literatura, Barthes na sua tese de morte do autor mostra que o escritor nasce ao mesmo tempo com o texto, aqui e agora, não pode representar nada anterior à sua enunciação como sujeito, porque ele se realiza à medida que escreve. Partindo desse princípio anti-intencionalista, Barthes substitui o autor como produtor original pela linguagem impessoal e anônima. Como não tem origem, o texto é um tecido de citações, composto de escrituras múltiplas, em que cabe ao escritor mesclá-las e ao leitor reuni-las. A unidade do texto não está mais na origem, mas no seu destino, daí que o nascimento do leitor deve pagar-se com a morte do autor.

O debate em torno do lugar do autor e do leitor na literatura é um dos pontos mais controvertidos da Teoria da Literatura. As teses da explicação (intenção do autor) e da interpretação (descrição das significações da obra) podem partir de constatações diferentes, podem traçar conclusões diferentes, mas o que está no centro de suas inquietações é entender a literatura como representação e linguagem. Para Lygia, que não gosta de teorizar, “porque na teoria acabo por me embrulhar feito um caramelo em papel transparente” (TELLES, 2002, p.122), escrever é recompor mundos e paraísos perdidos. Mais: “Quero apenas que meu leitor seja o meu parceiro e cúmplice no ato criador que é ansiedade e sofrimento. Busca e celebração.” ( idem,  p. 126)



Quais mundos e paraísos perdidos Lygia recompõe? Em Invenção e memória é a infância, a adolescência, a faculdade, o casamento...  Em “Que se chama solidão”, conto que abre o livro, o narrador revela imagens de seus primeiros anos. O narrador já começa a história apresentando índices de imaginação e verdade, de forma a atrair o leitor para o mundo possível da ficção. Ao tempo em que fala em fixidez, fala também em instabilidade: “Chão da infância. Algumas lembranças me parecem fixadas nesse chão movediço.” Os personagens (as pajens, a tia, o pai e a mãe), os ambientes (a casa, o quintal, a escola), os objetos (o piano, o charuto, o tacho de goiabada), os acontecimentos (as mudanças constantes de cidade, as estripulias de suas pajens, a hora de contar histórias fantásticas) estão todos lá, mas o que entra de ficção e realidade não é mostrado pelo narrador, nem interessa. Lygia diz que não quer ser compreendida, no sentido mesmo de não se preocupar em dar ao leitor uma explicação definitiva dos fatos narrados. Ainda assim, se o leitor insistir em entender partes ambíguas ou obscuras do texto, pode recorrer a uma estratégia de análise chamada de “passagens paralelas”.

Esse método, que segundo Antoine Compagnon (2001, p. 69) é a “técnica de base” da pesquisa e dos estudos literários, consiste em comparar ou procurar uma passagem paralela no mesmo texto ou em outro texto do autor para esclarecer a parte problemática. Na busca de uma resposta, o leitor duvidoso pode considerar, com base em suas convicções, as recorrências textuais como reais ou imaginárias. Embora seja um recurso interessante, esconde armadilhas. Vejamos como isso pode ocorrer nos livros da escritora

Em outros contos de Invenção e memória, personagens e histórias se repetem. O narrador faz referências à sua mãe (sempre envolvida com os trabalhos domésticos ou com o piano), ao pai (com seus charutos, jogos e viagens) e a si mesma (como criança ou adolescente) em “Suicídio na granja”, “A dança com o anjo”, “Cinema Gato Preto”, “Heffman”, “Potyra” e “Nada de novo na frente ocidental”. O esforço de pesquisa pode confirmar a veracidade de todas essas referências, pelo fato de serem reiterativas e com pouquíssimas diferenças de um conto para outro, mas é em Durante aquele estranho chá que podemos encontrar uma saída definitiva. Enquanto em Invenção e memória Lygia teve liberdade de inventar, no livro posterior isso não foi possível, porque foi feito com a reunião de textos de não-ficção, segundo sua própria classificação. Com esta indicação, talvez fique fácil para o leitor confirmar ou não suas desconfianças. Em crônicas como “No princípio era o medo”, “Depoimento de uma escritora”, “Resposta a uma estudante de Letras” e “Mysterium”, a escritora volta a falar da infância e da família. Aquelas imagens misturadas de sonho e realidade narradas no livro Invenção e memória são reproduzidas com a mesma intensidade de emoção. Ao comparar os textos dos dois livros, a conclusão do leitor é a de que as histórias do primeiro são verídicas, portanto, mais reais do que imaginativas ou ficcionais. Mas é nessa confirmação do real através das repetições que o perigo está escondido, as tais armadilhas da ficção. O narrador pode contar uma invenção repetidas vezes e de forma tão enfática em diversos textos que termina se transformando em verdade. O leitor depois de algum tempo de leitura pode não distinguir o mundo em que se encontra, por conta de as referências do mundo ficcional e do mundo real estarem intimamente ligadas e embaralhadas.

Em “Mysterium”, ela dá pistas de como isso acontece em seus contos e romances. Em relação ao personagem de ficção, diz que ele pode ser aparente ou inaparente, único ou se repetir. Conta ainda que uma personagem sua recorreu à mascara para não ser descoberta, “quis voltar num outro texto e usou de disfarce, assim como faz qualquer ser humano para mudar de identidade.” (TELLES, 2002, p. 122)  Lygia quis dizer que da mesma forma que pode estar falando de uma personagem ou história com aparência de verdade, pode apresentar uma outra real com aparência de mentira. Quem se arrisca a compreendê-la? O leitor mais uma vez nas mãos do autor. Assim como acontecia na infância dela, quando contava histórias assustadoras para crianças e velhos: “Algumas histórias eram repetidas, mas no auge da emoção, acabava por trocar os nomes das personagens ou mudar o enredo. (...) Eu me lembro, alguém protestou: Mas o lobisomem não sabia que essa criança era o filho dele? Prossegui implacável, Nessa hora ele não reconhece ninguém!” (idem, p. 107)

A questão da representação do mundo como característica fundadora da literatura é outro ponto que desde a Poética sempre exaltou os ânimos dos estudiosos da literatura. O termo mimèsis pode ser traduzido por uma extensa lista de acepções, mas que no final das contas dificulta seu sentido original, tal como Aristóteles estabeleceu. Na Poética, o conceito de mimèsis, diferentemente do que Platão concebeu na República, não é mais uma noção distintiva do texto dramático e épico através da presença do discurso direto ou indireto. Em sua obra, Aristóteles “não acentua o objeto imitado ou representado, mas o objeto imitador ou representante, isto é, a técnica da representação, a estrutura do muthos (história). (...) O que lhe interessa, no texto poético, é sua composição, sua poiésis, isto é, a sintaxe que organiza os fatos em história e em ficção.” (COMPAGNON, 2001, p. 104) Aristóteles falou de narração, e não de descrição, de modo que sua obra trata da mimèsis como a representação de ações humanas pela linguagem ou como arranjo narrativo dos fatos. Um texto não ganha o estatuto de ficção por contar uma história mais realista ou menos realista, mas como cria nessa interface um mundo possível.

Umberto Eco usa a metáfora de um bosque cheio de trilhas e rumos como forma de entender o texto narrativo. Como o bosque, o mundo ficcional tem limites, mas o seu tamanho não é determinado. Seguindo por um caminho sugerido ou ainda não explorado, o leitor-caminhante pode encontrar uma cerca que o impede de ir além. É dentro das fronteiras desse bosque possível, que ele o explora com profundidade, usando toda sua imaginação para percorrê-lo. Quanto mais íntimo esse mundo lhe parecer, mais excitante torna seu passeio ou leitura. O universo ficcional não termina com a história, devido às infinitas possibilidades de criação, às vezes mais prazerosas do que o mundo real. É por isso que a ficção fascina tanto quem lê quanto quem escreve. Para Lygia, é o ofício do prazer, da paixão.

Ao entrar no bosque de Invenção e memória, o leitor percebe que existem caminhos que se bifurcam, se entrecruzam e se encontram indefinidamente, ou seja, os tais vasos comunicantes entre o sonho e a realidade. Um labirinto de palavras e experiências, mesmo que ele tenha sido construído em um gênero considerado fechado, como é o conto. Fechado, mas não restritivo. Estudos sobre a teoria dos gêneros consideram a classificação das obras como modelo de leitura. Segundo esse código literário, o leitor já saberia de antemão que o conto tem estruturas sólidas e definitivas de interpretação. Como se não bastasse a intenção do autor, o leitor agora se vê diante de outra amarra. O próprio escritor neste caso também está preso, porque sua criação está sujeita a um padrão, que se não for respeitado não ganha a chancela do cânone como texto literário.   

Embora seja uma exímia contista, Lygia não segue rigidamente o cânone do gênero. Subverte a linguagem, o enredo, o tempo, o espaço. Mas o faz porque considera a insatisfação, a criatividade e a infinitude como traço marcante da arte. “É preciso pesquisar, se aventurar por novos caminhos, desconfiar da ‘facilidade’ com que as palavras se oferecem.” (TELLES, 2002, p.173)

A forma do conto como propõe Massaud Moisés em A criação literária: prosa, se comparada com o conto lygiano, mostra muitas diferenças, algumas semelhanças. Em relação ao ponto de vista, a preferência de Lygia pela primeira pessoa domina quase todos os contos do livro. Talvez por se tratar de histórias em que há um tom confessional, que não seria narrado senão pelo próprio personagem, os contos, por exemplo, “A dança com anjo”, “Nada de novo na frente ocidental” e “Dia de dizer não” apresentam um protagonista central voltado para si mesmo, para sua subjetividade mais latente e pulsional. Para Massaud, isso pode prejudicar a narrativa, visto que implica uma visão limitada das coisas, ou seja, o narrador-personagem não teria o distanciamento necessário para contar sua própria história. “Tal individualismo pode comprometer a plausibilidade psicológica da história, pois o narrador tende a oferecer-nos de si uma imagem sempre otimista.” (MOISÉS, [19--], p. 35)

Em “Dia de dizer não”, a personagem já no título expressa seu pessimismo. Neste conto, a narradora decide por um dia negar tudo que sua moral a obriga a aceitar.

Estamos nesta cidade aqui embaixo onde tem invasor de todo tipo, desde os extraterrestres (em geral, mais discretos ) até aqueles mais ambíguos: o invasor da vontade. Esse vem mascarado. Aproveitando-se, é claro, do mais comum dos sentimentos, o da culpa. No imenso quadro do ‘mea culpa’, a postura fácil é a da humildade que quer dizer fragilidade. (TELLES, 2002, p. 59)


Na primeira parte do conto, ela justifica a atitude que tomará em seguida, mostrando-se em todo tempo revoltada com a hipocrisia, com o comodismo e com o materialismo dos seres humanos, principalmente dos políticos. É na segunda parte que o enredo se desenrola. No táxi, em meio a um trânsito frenético e congestionado, ela nega pedidos de dinheiro de mendigos, ofertas de ambulantes que vendem morangos, panos de limpeza, chicletes e vassouras. Mas é o vendedor de papéis de carta perfumados, um menino magro, dentuço e deficiente físico que chama a atenção da personagem. Ele insistentemente empurra pela janela os papéis, tentando convencê-la mais pelo prazer que ela teria em enviar uma carta a um amigo ou namorado (a personagem parece uma mulher solitária), do que por sua pobreza evidente e necessidade de ganhar um trocado. Embora o motorista, solidário, sugerir à personagem a compra, por causa do bom perfume dos papéis, ela continuou na decisão de dizer não. Depois de alguns afazeres que a levaram aos Correios e ao banco, ela, criticada por outro mendigo que diante de uma negativa lhe diz que seu coração é de pedra, pede ao motorista para retornar à rua onde o “menino das muletas” estava, a fim de comprar todas as suas cartas. Não conseguiu encontrá-lo, perguntou aos outros ambulantes se tinham visto “o menino das cartas perfumadas”, mas era tarde demais. A mea culpa que tanto evitava, impôs-se e de forma bastante dura e incisiva.

A narradora não se apresenta otimista nem superior aos outros personagens pelo simples fato de ser uma voz de primeira pessoa; pelo contrário, revela-se individualista, insegura e frágil, mesmo que isso deponha contra si, segundo os padrões morais de sua sociedade, é seu interior, confessando o que pensa de verdade, que lhe dá uma identidade mais natural. Mas é o próprio Massaud quem mostra o outro lado do emprego desse tipo de foco narrativo. Para o crítico, a história ganha verdade aos olhos do leitor, quando entre este e o narrador não existe intermediário, pois a comunicação é direta. “Os dramas individuais adquirem eloqüente força quando nos são transmitidos pelas próprias pessoas que os suportaram.” (MOISÉS, [19--], p. 35)

Com uma estrutura menor do que a do romance, o conto é apresentado como uma “obra fechada, dramaticamente circunscrita”. Uma de suas partes constituintes mais discutidas talvez seja a que diz respeito à trama. O conto tem de ser linear e já começar com vistas a seu epílogo, que pode ser ou não enigmático, imprevisível e surpreendente. Segundo esse padrão, o autor deve se preocupar como introduzir a narrativa, porque é a partir do que for lançado nas primeiras linhas que o leitor sentir-se-á estimulado a seguir até o fim. “O contista não perde tempo em delongas, que enfastiariam o leitor, interessado em logo chegar ao âmago da história, para apreendê-la dum só fôlego”, conclui Massaud Moisés (idem, p. 43). Em “Nada de novo na frente ocidental”, a personagem conta sua participação como voluntária do Exército nos tempos da 2ª Guerra. Sua função era de orientar a população em caso de blecaute em São Paulo, caso os alemães bombardeassem a cidade. Inserida nesta história, outra acontece, que é a conversa entre ela e a mãe sobre seu envolvimento na guerra. Na tarde em que esse assunto é tratado, a mãe se prepara para viajar ao interior, enquanto a narradora fica em casa, onde espera o telefonema de um colega que confirmaria o passeio numa casa de chá. A história aparentemente caminha para este final, no qual sua expectativa seria o chamado, por isso acomoda-se confortavelmente na poltrona diante do telefone, “sonhando e esperando por alguma coisa que vai acontecer.” (TELLES, 2000, p. 125) O leitor já sabe que não é o colega quem ligaria, e sim um homem que anuncia a morte de seu pai. Ela revela o final do conto não no seu epílogo, mas no desenrolar da história. Mesmo assim, o leitor não sabe até a última linha do conto que este é o seu desfecho, ou pelo menos, o que a narradora sugere.


Nessa mesma tarde, (...) uma voz de homem me anunciava pelo telefone que meu pai tinha morrido subitamente num quarto de hotel (...). Mas espera um pouco, estou me precipitando, por que avançar no tempo? Ainda não tinha acontecido nada, era manhã quando minha mãe se preparava para a viagem, ia ver minha madrinha e eu ia ver o meu poeta, espera! Deixa eu viver plenamente aquele instante enquanto comia o pão com queijo quente (...). A hora ainda era do sonho. (...) Então o homem disse com voz grave, uma notícia triste, acontece que o seu pai... ele não era o seu pai? Espera um pouco por amor de Deus, espera! Acontece que ainda é manhã e estou tão contente (idem, p. 123-4).


Com a mesma proposta de antecipação do final, mas sem dar pistas ao leitor do que seria o desfecho, a escritora retoma esse estilo em “Onde estiveste de noite?”, de Durante aquele estranho chá. Ela inicia a crônica falando de sua estada em Marília, interior paulista, onde faria uma palestra na Faculdade de Letras. No quarto de hotel, de madrugada, ela é acordada por uma andorinha que entrou “Deus sabe por onde”, já que a janela estava fechada. A ave estava assustada e esbaforida por tentar fugir. A personagem abre a janela, mas em vez de a andorinha sair, pousou sobre a trave de madeira dos pés da cama.


Ficou assim de frente, me encarando, as asas um pouco descoladas do corpo e o bico entreaberto, arfante. (...) Mas esta é hora de andorinha ficar assim solta? (...) Ela não respondeu mas inclinou a cabeça para o ombro e, sorriu, aquele era o seu jeito de sorrir. (...) Com a mão do pensamento consegui alcançá-la e delicadamente fiz com que se voltasse para a janela. Adeus, eu disse. Então ela abriu as asas e saiu num vôo alto. Firme.” (TELLES, 2002, p. 18)


Na outra parte do conto, ela relembra alguns momentos passados com a escritora Clarice Lispector em um congresso de escritores latino-americanos na Colômbia. Conta que ambas, enfadadas de tantas palestras (Clarice disse que os escritores deviam estar em suas casas escrevendo), passam um tempo no bar do evento tomando champagne e vinho, e conversando sobre coisas mais amenas do que o duro ofício da escrita. Depois dessas “demoradas lembranças”, a escritora retorna ao momento em que estava em Marília. Diz que ao chegar à Faculdade é interpelada por uma jovem que informa a morte de Clarice Lispector durante a noite. Lygia abraça a mocinha e fala: “Eu já sabia, disse antes de entrar na sala. Eu já sabia.” (idem, p. 22)



Assim como a morte de seu pai, a de Clarice é também revelada com antecedência. Especialmente na crônica, a indicação textual não se faz tão clara, até porque o leitor numa primeira leitura pensa que se trata de duas histórias sem conexões, mais parecendo um relato de lembranças fragmentadas. Só no final é que todas se entrecruzam e o leitor sabe que aquela andorinha foi o aviso de que algo havia acontecido. Antes da revelação a escritora descreve que a andorinha “antes de desaparecer na névoa traçou alguns hieróglifos no azul do céu.” A certeza de Lygia sobre a morte de Clarice talvez tenha vindo da decifração da mensagem escrita no ar pela ave. Esse é o texto de Durante aquele estranho chá que mais se aproxima da ficção, tornando os limites entre crônica e conto impalpáveis. Podemos considerar que ao narrar sobre a andorinha no quarto os recursos ficcionais são bastante evidentes, como o uso de uma linguagem mais subjetiva e envolvente. Quanto à parte do evento no exterior, a escritora fala por si mesma, sem precisar de uma personagem como recurso discursivo, embora nos dois momentos use a primeira pessoa.  Em nenhum dos dois textos aqui comentados, o epílogo acontece de forma impactante como sugere Massaud Moisés, embora em outros contos de fases anteriores, como “Venha ver o pôr do sol” e “Antes do baile verde”, o desfecho seja surpreendente.

Talvez o estilo de Lygia, especialmente em seus dois últimos títulos, esteja mais próximo da proposta de Ricardo Piglia no que se refere a contar duas histórias que deságuam num final só, mas com um detalhe diferente: os finais são sempre abertos. Segundo o escritor argentino, “a arte do contista consiste em saber cifrar a história 2 nos interstícios da história 1. Uma história visível esconde uma história secreta, narrada de um modo elíptico e fragmentário.” (PIGLIA, 1994, p. 37)

Outro ponto que se deve destacar nos contos de Invenção e memória é a recorrência da morte, na mesma proporção em que a infância aparece. São temas que nas memórias da autora estão sempre circulando, às vezes sendo evocados no mesmo instante, como que completando o significado de um e de outro na história. É o caso de “Suicídio na granja”, onde a menina pergunta ao pai sobre a morte de um homem que encheu os bolsos de pedra e se jogou no rio. Questionou ainda se os animais também se matam, e o pai respondeu que só gente cometia suicídio. A imaginação da criança era mais forte do que a resposta seca e racional do pai. Ela conta a história de amizade entre um ganso, Platão, e o galo, Aristóteles. Numa clara intenção de transformá-los em personagens de uma fábula, a personagem narra as aventuras dos dois bichos, como o passeio e a procura de comida no terreiro. Mas os donos da granja decidiram matar o ganso para um banquete. Triste com a separação de forma tão cruel, o galo definhou, sua crista murchou, o olhar esvaziou e foi encontrado morto ao lado do tanque onde o companheiro costumava se banhar.

A morte nem sempre em seus contos se apresenta de forma tão pueril, como em “Suicídio na granja”. Em “O menino e o velho”, a infância representada não é a da narradora, mas a de uma criança pobre que é acolhida por um senhor rico. A história se passa em três momentos num restaurante à beira mar. No primeiro contato da narradora com os dois, ela identifica que entre o velho e o menino não existia nenhum laço de parentesco, por conta das diferenças sociais aparentes. Percebeu que o homem evitava o olhar dela, enquanto ele conversava em tom baixo com o menino, como que o convencendo a fazer algo que ninguém mais podia ouvir. Num segundo momento, semanas depois, ela nota que o aspecto do menino melhorou bastante. Vestia roupas novas, tinha unhas e cabelos cortados, parecia mais feliz. Na terceira parte da história, alguns meses mais tarde, ela entra no restaurante de novo, mas não vê os dois. O garçom informa que o menino enforcou o velho com um cordão de náilon, roubou seu dinheiro e fugiu. Ele foi encontrado nu e com escoriações pelo corpo.

Talvez esse seja o conto mais “redondo” do livro. Aqui o enredo é estruturado para dar à narrativa um encadeamento de ações até o final, sem fragmentações nem evasivas. Os personagens são bem delineados, embora em alguns momentos a escritora prefira dar um tom misterioso à relação dos dois. Ela utiliza o mar em frente ao restaurante como espelho do comportamento do velho e do menino. O mar se repetia em ondas, mas também era irrepetível (representava o contraste entre os dois), o mar e o céu formavam uma única tonalidade (o contraste se desfaz entre os dois) e o mar era pesado e rugia rancoroso (algo de errado acabou com a amizade de forma trágica). A história oculta, de que fala Piglia, emerge aqui num final surpreendente e enigmático. O que teria acontecido entre eles para que houvesse um assassinato? Será que o garoto já planejava a morte do velho para roubá-lo ou foi por legítima defesa que o menino o matou? Em todo caso, essa criança não é a mesma do conto “Suicídio na granja”, principalmente quando se destaca a ingenuidade como traço do comportamento infantil. O menino usou sua ingenuidade para matar, enquanto a menina compreendeu a morte através de uma visão pueril do mundo e das relações sentimentais.

Em entrevista concedida à Clarice Lispector, a escritora respondeu qual é a raiz de um texto seu, em especial, o conto. Para ela, algumas idéias podem surgir de uma simples imagem, de uma frase que se ouve ao acaso. “A idéia do enredo pode ainda se originar num sonho. Tentativa vã de explicar o inexplicável, de esclarecer o que não pode ser esclarecido no ato da criação. A gente exagera, inventa uma transparência que não existe porque – no fundo sabemos disso perfeitamente – tudo é sombra. Mistério. O artista é um visionário. Um vidente.” (TELLES, 2002, p. 170-171)

A concepção de Lygia da criação literária sempre gira em torno da invenção e da memória, correspondendo assim a proposta que ultimamente tem desenvolvido e que está expressa na frase de Paulo Emílio Sales Gomes, citado como epígrafe de Invenção e memória: “Invento, mas invento com a secreta esperança de estar inventando certo.”  É tão inconstante o limite entre a ficção e a realidade nos textos da escritora que, embora ela própria tente apresentar uma justificativa plausível sobre suas histórias, isso não resolve muito quando se lê um conto ou uma crônica sua. Tome-se como exemplo a própria classificação dos livros aqui analisados. Sob a categoria de conto, pensa-se que “Rua Sabará, 400” apresenta a estrutura de um texto ficcional, e o leitor acredita nisso. Mas quão surpreso ele fica quando sabe que essa história é a “mais” real de todos os textos de Invenção e memória. Ela explica que é a ênfase que dá o estatuto de ficção ou de não-ficção a seus textos.

Por esse caminho, pode-se considerar que a ênfase – não seria intenção? – também está presente em Durante aquele estranho chá. A ênfase ficcional neste livro está pulverizada em todos as crônicas, principalmente quando toca em temas caros a seu imaginário, como infância, família e morte. Se ela tenta explicar o que é inexplicável, resta ao leitor não compreendê-la, mas lembrá-la por algo que mais o impressionou em seus textos. Pode ser a andorinha mensageira que invade o quarto, o mar que metamorfoseia de acordo com os sentimentos humanos, a criança que conta histórias fantásticas e se diverte com o medo alheio. Se a vontade do escritor, segundo Lygia Fagundes Teles, é a de se comunicar com seu próximo, a do leitor é a solidariedade, “que me procura e me abraça.”

REFERÊNCIAS
BACHELARD, Gaston. “Os devaneios voltados para a infância”. In: A poética do devaneio. São Paulo: Martins Fontes, 1996. p. 93-137.
_____. “A casa. Do porão ao sotão. O sentido da cabana”. In: A poética do espaço. São Paulo: Martins Fontes, 1998. p. 23-53.
BARTHES, Roland. O prazer do texto. Lisboa: Edições 70, 1988.
BRAIT, Beth. A personagem. São Paulo: Ática, 1998. (Série Princípios)
BRUNEL, Pierre (org.). Dicionário de mitos literários. Rio de Janeiro: José Olympio, 1997.
COMPAGNON, Antoine. O demônio da teoria: literatura e senso comum. Belo Horizonte: Ed. UFMG, 2001. (Coleção Humanitas)
CORTÁZAR, Julio. Alguns aspectos do conto. In: Valise de cronópio. São Paulo: Perespectiva, 1974. p. 147-166. (Coleção Debates, 104)
ECO, Umberto. Seis passeios pelos bosques da ficção.  São Paulo: Companhia das Letras, 1994.
GOTLIB, Nádia Batella. Teoria do conto. São Paulo: Ática, 1988. (Série Princípios)
MESQUITA, Samira Nahid. O enredo. São Paulo: Ática, 1997. (Série Princípios)
MOISÉS, Massaud. O conto. In: A criação literária: prosa. São Paulo: Cultrix, [19--]. p. 15-54.
PIGLIA, Ricardo. “Teses sobre o conto”. In: O laboratório do escritor.  São Paulo: Iluminuras, 1994. p. 37-41.
TELLES, Lygia Fagundes. Invenção e memória. Rio de Janeiro: Rocco, 2000
_____. Durante aquele estranho chá: perdidos e achados. Rio de Janeiro: Rocco, 2002.
_____. Invenções da memória. Suplemento Literário de Minas Gerais, Belo Horizonte, n° 73, p. 4-9, jul. 2001. Entrevista concedida a Suênio Campos de Lucena.
TODOROV, Tzvetan. Linguagem e literatura. In: As estruturas narrativas. São Paulo: Perspectiva, 1970. p. 53-64 (Coleção Debates, 14)


domingo, 17 de fevereiro de 2013

Yiri Yiri Bon e Ziriguidum: Trânsitos Musicais no Atlântico Afrobaiano


Filhos de Jorge

Gnonnas Pedro


"Este é o nosso verão". Com essas palavras, Dan Miranda, vocalista da Banda Filhos de Jorge, resume a alegria de ouvir "Ziriguidum" na boca do povo e que, posteriormente, foi escolhida pela maioria das pesquisas como o hit do Carnaval de Salvador deste ano. 

Como o verão acaba, devido mesmo a sua sazonalidade, a música da banda será substituída por outras tantas criações ou recriações ano que vem, mas uma música pode, além de ganhar a preferência instantânea do público, ganhar também a memória pessoal e coletiva, e assim ser lembrada ad infinitum e tocada sempre como presente e atual. 

A efemeridade das músicas de Carnaval é uma verdade difícil de ser aceita no todo, prefiro acreditar em metade dessa certeza, do contrário não estaríamos até hoje cantando as marchinhas carnavalescas dos anos 20 aos 50 do século passado, a maioria delas cariocas, mas nem por isso traduzidas às vibrações etílicas e sexualizadas da folia soteropolitana em bailes populares ou elitizados da época.

Isso sem contar com os sucessos do passado da própria "axé" que embalam os corações e rebolam os corpos quando o repertório de músicas atuais não dá conta dos vários quilômetros a serem ainda pulados atrás do trio. 

Não muito diferente das músicas criadas no verão baiano para estourar no Carnaval, as marchinhas visavam os concursos promovidos pelas rádios, o meio de comunicação mais popular do período. Mas como geralmente acontecia nessas disputas, já falando dos nossos tempos, nem sempre a música que os empresários ou a mídia escolhem (com muito jabaculê na jogada) ganha. A voz do povo tem seu lugar e desarma tudo.

O que me interessa mais nessa história toda é o fato de "Ziriguidum" ser a continuidade ou o desdobramento de um fluxo simbólico musical de longa data que sai da África atravessa o Atlântico até Cuba, faz a rota contrária, chega ao Benin, retorna às Américas e aporta em Salvador. 

Li as primeiras e soltas informações sobre "Ziriguidum" pouco antes do Carnaval. Segundo a colunista Natalia Comte seria um cópia de "Yiri Yiri Bon". Mas também não informava de quem era. Os produtores do grupo revelaram que a música era uma versão de Gileno e Gilmar Gomes para essa letra da década de 50, originalmente do compositor cubano Thorn Silvestre Mendez Lopez.

A gravação a partir da qual os compositores baianos tiveram contato é a do disco El Cochechivo (Ledoux, 1981) de Gnonnas Pedro, cantor beninense, que começou sua carreira solo nos anos 60. A partir dos anos 90 até sua morte, em 2004, tornou-se um dos vocalistas da Banda Africando, grupo musical composto por músicos do oeste da África, onde a música cubana dos anos 50 se popularizou. 

Nesta versão de Gnonnas Pedro, o verso "me gusta mulata que baila" foi traduzida quase literalmente pela dupla baiana como "eu gosto da nega mulata/ eu gosto da nega que samba", mas numa outra versão,  Eliades Ochoa, músico cubano, interpreta "Yiri Yiri Bon" e revela que canta esse "afro" de Beny Moré à sua maneira, que resulta  na substituição de mulata por  "muchachos" no verso "me gusta muchachos la rumba/ me gusta muchachos la conga". 

No entanto, o que na versão de Gnonnas Pedro não aparece, nem de Filhos de Jorge, mas nas de Beny Moré e de Eliades Ochoa não muda, é a referência forte da identidade negra na música cubana, cujos versos a seguir demonstram isso: "bailar al compas do tambor/ tocados por manos/ de negros cubanos/ que hayan jurados tocar su tambor". 

Eis que aparece "Ziriguidum" na Bahia, que independentemente de ser original ou não, dialoga com um repertório cultural transcontinental, pondo em circulação simbologias negras que não imaginávamos existir, mas que pela força da permanência sonora africana em nosso imaginário, articula pelo Atlântico as duas margens dessas tradições musicais, ressignificando seus elementos criativos.

A relação entre a música africana e baiana em diferentes contextos de produção, difusão e recepção é tema de meu projeto de doutorado, intitulado "Atlântico Afrobaiano: textualidades, performances e trânsitos musicais entre África e Bahia", a ser desenvolvido no Programa de Pós-Graduação em Literatura e Cultura da UFBA. 

Antes mesmo de começar a pesquisa, para qual já selecionei alguns artistas, vejo-me, a partir de Filhos de Jorge, e de outra revelação baiana, mas numa outra clave, como a black music de Dão, a redimensionar constantemente meu corpus. Isso tudo é válido, porque mostra a potência dessa referência negro-africana para a cultura baiana. E eu falo isso sem essencialismos, sem baionocentrismos.