terça-feira, 31 de julho de 2012

O Amor é Brega!


Casal gay celebrando seus afetos ao som da música brega



Quem nunca ouviu música romântica na solidão? Quem nunca sofreu de uma cornitude existencial? Quem nunca morreu de ciúmes? 

Quem responder não, está querendo ser o que ninguém pode deixar de ser, pelo menos uma vez na vida: brega. Independentemente de classe social, a dor da desilusão amorosa nos deixa ridículos, para lembrar aquele poema de Fernando Pessoa. 

Viajando pelos grotões do Brasil (e dos sentimentos dos entrevistados, anônimos e famosos), Ana Rieper dirige "Vou rifar meu coração" (assista aqui ao documentário completo) com uma sutileza que encanta a todos. Sem ser invasiva, a ideia do documentário é o de deixar as pessoas falarem pelos cotovelos (já calejados de dor) sobre suas mágoas (e felicidades também) no amor.

A trilha sonora dessa história é a música de compositores e intérpretes de diferentes gerações, desde  Lindomar Castilho, Nelson Ned e Agnaldo Timóteo, passando por Amado Batista, Odair José e Wando, até chegar em Walter de Afogados e Rodrigo Mell. 

Aplaudido e premiado em vários festivais nacionais e estrangeiros, "Vou rifar meu coração" foi a melhor estréia da semana nos cinemas de Salvador. Em cartaz no Circuito Saladearte, que se destaca pela excelente qualidade e variedade de seleção de documentários musicais, uma quase raridade nos circuitões de shoppings, o filme de Ana Rieper é louvado pela pesquisa e pela fotografia.

Quanto à pesquisa, não deve ter sido difícil encontrar quem não tivesse chorado nos cantos por uma traição e tivesse a coragem de abrir sua vida sexual e afetiva como desabafo. Nada pior frente ao que celebridades fazem e falam por aí e que são destaques em revistas ou programas de televisão. 

O difícil na pesquisa talvez tenha sido escolher entre tantas histórias ouvidas aquelas mais encantadoras, engraçadas (para não dizer tragicômicas), humilhantes e infelizes de homens e mulheres, héteros e homossexuais, que foram embalados em suas experiências afetivas por um tipo de música considerada inferior pela simplicidade ou obviedade ou pieguice de suas letras. Embora rejeitadas pela intelectualidade acadêmica e pela elite social, essas composições e seus intérpretes são até hoje, depois de falecidos ou aposentados, uma referência de cultura popular e midiática na indústria fonográfica e no rádio.

Aliás, a música brega tem sido reabilitada como estudo e tema desde a última década com a edição do livro "Eu não sou cachorro não" (Record), de Paulo César Araújo, e mais recentemente o documentário "Waldick: sempre no meu coração", dirigido por Patrícia Pillar, sobre um dos ícones da música brega, Waldick Soriano.

Quanto à fotografia, a câmera deixa entrar a luz natural do lugar onde são gravados os depoimentos ou mesmo as cenas sem fala das pessoas convidadas. A preferência por interiores e noturnos realça a intenção da proximidade. As cenas iniciais e finais perseguem longamente, enquanto passam os créditos, o pôr-do-sol, como que preparando o espectador para entrar na intimidade alheia, na sensibilidade recolhida dos mal de amores.

Em alguns momentos explorando a câmera em movimento, mas na maioria preferindo a cena fixa, a diretora conduz com coerência a narrativa a que se propôs fazer, embora o objetivo inicial em 2003, quando começou a captar as primeiras cenas, não foi totalmente o que vimos na tela. De lá para cá, Ana Rieper mudou o foco do projeto, escolhendo por tratar da recepção dessas músicas pelo público e como isto representa muito em suas vidas.

O único senão é que os créditos dos lugares e dos entrevistados só aparecem no final. Não sabemos quem é quem ou a locação por onde a diretora se enveredou. Isso ajudaria mais um pouco na linha narrativa do documentário que tem uma característica "on the road" do começo ao fim. Outra questão curiosa, que não chega a ser restritiva, é sobre a escolha de explorar o Nordeste nesta jornada musical. Será que o nordestino é mais brega do que o sulista? Há amor brega também no sertanejo de São Paulo, Minas e Goiás, onde inclusive o número de "consumidores" é maior.

A trilha sonora é uma beleza à parte, ou melhor, se não fosse a trilha o que seria do filme, se o objetivo mesmo era contagiar também o espectador (malgrado alguns censores na sala tenham reclamado do coral e do buchicho de meus amigos), afinal, "Princesa", de Amado Batista, embora não faça parte de minha coleção de CDs, ainda assim, faz parte de nosso imaginário musical, devido à reprodução nas rádios populares do Brasil e nos botecos e cabarés na voz de um cover.

"Vou rifar meu coração" é recomendável para aquela sua tia solteirona que coleciona discos de Agnaldo Timóteo, acreditando que ele ainda cantará somente para ela. Ou então, para aquele corneado que ainda tem a esperança de que sua amada vai voltar e para isso já tem na vitrola um LP de Wando cantando: "Eu já tirei a sua roupa/ Nesses pensamentos meus/ Já criei mil fantasias/ De desejo e de prazer/ Eu já toquei a tua pele/ Já senti as tuas mãos/ Já beijei a tua boca/ Já senti teu coração/ Só não tenho teus carinhos/ Só não tenho teu querer."

Todo mundo conhece um ou outro! Eles vão adorar!