"Todo mundo gosta de abará/ Todo mundo gosta de abará/ Ninguém quer saber o trabalho que dá/ Ninguém quer saber o trabalho que dá". Esses versos são da canção A preta do acarajé, de Dorival Caymmi.
Eu evoco essa letra, porque hoje eu tive uma experiência baiana singular. Digo, singular, porque nunca vivenciei o momento sublime de uma baiana de acarajé montando seu tabuleiro. Mais: de ajudar a baiana a montar sua guia.
Às segundas ou terças-feiras, costumo comer o abará de uma baiana, cujo ponto fica na Rua do Tabuão, ao lado do Bar do Neuzão, no Pelourinho. O quitute é para mim o melhor abará da Bahia, porque, diferentemente do que se vende na maioria dos tabuleiros, ele é feito com feijão fradinho mesmo, bem ralado e misturado a camarão e azeite de dendê de fina escolha. Tudo cheirando a África, a boca cheia d'água com suas delícias.
Ao chegar, vi a baiana em pé e de braços cruzados, com seu panelão de abará e outras sacolas ao lado. Perguntei, ainda dentro do carro, se haveria abará. Ela, muito simpática, disse que aguardava alguém trazer o tabuleiro. Ainda me perguntou se o abará seria para "levar" ou para comer no local. Respondi que não teria pressa e que aguardaria ela arrumar a banca.
Depois de 10 minutos de expectativa, um homem trouxe o tabuleiro, e eu, já fora do carro, ajudei a levantar o panelão pesado para colocar sobre um banquinho. Esperava ansioso o momento de comer o abará quentinho, o primeiro do dia, mas o tempo da baiana não era igual o meu. E então respeitei.
Como eu disse que não tinha pressa, ela entendeu e preciosa e lentamente arrumou seu tabuleiro. Toalhas alvas e perfumadas com alfazema, panelas de alumínio brilhando, vasilhames plásticos e talheres limpos, tudo isso compunha um quadro de beleza gastronômica a qual eu não tinha ainda presenciado. Ainda ajudei a tirar o saco plástico que embalava a panela do camarão, que foi aproveitado para forrar a lata de lixo, onde seriam jogadas as embalagens de papel e as palhas do abará.
Outras pessoas chegaram e foram tomando seus postos na fila. A baiana fechou um pouco a cara quando um homem e uma mulher, conversando animadamente, empatavam seu livre trânsito ao redor do tabuleiro, já nos últimos segundos de preparação para começar a vender. Pensei que diante dessa concentração de gente, afoita como eu para comer o abará, ela me esqueceria. Mas antes que alguém pedisse o seu, ela apontou para mim, soberana de seu ofício, e disse: "Psiu, você é que é o primeiro. Tem dinheiro contado?". Claro que sim. R$8,00 em notas de R$2,00.
Decidi por comer um abará na hora, outro, para "levar". Hum! O primeiro abará vendido do dia. Aquela delícia regada a uma pimenta-da-costa, feita há pouco tempo, com camarões médios, bem refogados, tinha que ser para alguém faminto, e ao mesmo tempo, realizado, pelas boas ações que fez e pelas boas novas que recebeu.
O abará da sorte, nessa segunda-feira de Omolu, não era para qualquer um!
Era para mim e para meus irmãos.