segunda-feira, 28 de maio de 2012

Abará da Sorte





 "Todo mundo gosta de abará/ Todo mundo gosta de abará/ Ninguém quer saber o trabalho que dá/ Ninguém quer saber o trabalho que dá". Esses versos são da canção A preta do acarajé, de Dorival Caymmi. 

Eu evoco essa letra, porque hoje eu tive uma experiência baiana singular. Digo, singular, porque nunca vivenciei o momento sublime de uma baiana de acarajé montando seu tabuleiro. Mais: de ajudar a baiana a montar sua guia.

Às segundas ou terças-feiras, costumo comer o abará de uma baiana, cujo ponto fica na Rua do Tabuão, ao lado do Bar do Neuzão, no Pelourinho. O quitute é para mim o melhor abará da Bahia, porque, diferentemente do que se vende na maioria dos tabuleiros, ele é feito com feijão fradinho mesmo, bem ralado e misturado a camarão e azeite de dendê de fina escolha. Tudo cheirando a África, a boca cheia d'água com suas delícias.   

Ao chegar, vi a baiana em pé e de braços cruzados, com seu panelão de abará e outras sacolas ao lado. Perguntei, ainda dentro do carro, se haveria abará. Ela, muito simpática, disse que aguardava alguém trazer o tabuleiro. Ainda me perguntou se o abará seria para "levar" ou para comer no local. Respondi que não teria pressa e que aguardaria ela arrumar a banca.

Depois de 10 minutos de expectativa, um homem trouxe o tabuleiro, e eu, já fora do carro, ajudei a levantar o panelão pesado para colocar sobre um banquinho. Esperava ansioso o momento de comer o abará quentinho, o primeiro do dia, mas o tempo da baiana não era igual o meu. E então respeitei.

Como eu disse que não tinha pressa, ela entendeu e preciosa e lentamente arrumou seu tabuleiro. Toalhas alvas e perfumadas com alfazema, panelas de alumínio brilhando, vasilhames plásticos e talheres limpos, tudo isso compunha um quadro de beleza gastronômica a qual eu não tinha ainda presenciado. Ainda ajudei a tirar o saco plástico que embalava a panela do camarão, que foi aproveitado para forrar a lata de lixo, onde seriam jogadas as embalagens de papel e as palhas do abará.

Outras pessoas chegaram e foram tomando seus postos na fila. A baiana fechou um pouco a cara quando um  homem e uma mulher, conversando animadamente, empatavam seu livre trânsito ao redor do tabuleiro, já nos últimos segundos de preparação para começar a vender. Pensei que diante dessa concentração de gente, afoita como eu para comer o abará, ela me esqueceria. Mas antes que alguém pedisse o seu, ela apontou para mim, soberana de seu ofício, e disse: "Psiu, você é que é o primeiro. Tem dinheiro contado?". Claro que sim. R$8,00 em notas de R$2,00.

Decidi por comer um abará na hora, outro, para "levar". Hum! O primeiro abará vendido do dia. Aquela delícia regada a uma pimenta-da-costa,  feita há pouco tempo, com camarões médios, bem refogados, tinha que ser para alguém faminto, e ao mesmo tempo, realizado, pelas boas ações que fez e pelas boas novas que recebeu.

O abará da sorte, nessa segunda-feira de Omolu, não era para qualquer um! 

Era para mim e para meus irmãos.    

terça-feira, 1 de maio de 2012

Raulzito, o Cara








Foi um prazer assistir com José Raimundo, o Pinguim, ao documentário "Raul Seixas: o início, o fim e meio", de Walter Carvalho, por um motivo muito especial.

Como estou envolvido na co-autoria do livro de Pinguim, um dos mais antigos profissionais da televisão baiana, achei que seria positivo reavivar a sua memória de dois momentos de contato com Raul Seixas.

O primeiro, quando ambos foram colegas de turma do Colégio Maristas, em Salvador, na década de 60, sendo, portanto, contemporâneos de um período de efervescência musical que tinha o rock and roll de Elvis Presley como a sensação da juventude de classe média.

O segundo, quando ambos se reencontraram no final dos anos 70, no Rio de Janeiro, e Raul, numa fase de pop star e com influência na mídia da época indicou Pinguim à Tv Globo para trabalhar na produção da emissora.

Esses dois episódios estão narrados no livro "Minha Vida é Flash" de José Raimundo, que completa em 2012, 35 anos de carreira na televisão como produtor e diretor, com experiência na Tv Itapoan e Tv Aratu.

Além dessa satisfação de assistir ao filme com Pinguim, uma outra diz respeito ao próprio documentário, especialmente sobre Raul Seixas, de quem, embora conhecesse os seus maiores sucessos, não conhecia bem sua trajetória artística e pessoal.

Walter Carvalho apresenta ao espectador, fã ou interessado pela vida e obra de Raulzito, um cine-retrato equilibrado e abrangente. Tentando contar a história numa linha de tempo sequencial, mas sem perder o próprio mote transgressor do título, inspirado em um verso de "Gita", o diretor nos fisga pela curiosidade de conhecer os fios que compõem a filigrana da personagem/personalidade do cantor e compositor baiano.

Com imagens de arquivos pessoais e de televisão, além de depoimentos de amigos, familiares, jornalistas, músicos, ex-esposas e companheiras, o filme não traz muitas revelações, mas reacende algumas polêmicas do convívio entre esses entrevistados e Raul, como foi com um de seus parceiros mais conhecidos, Paulo Coelho.

Aliás, uma das cenas mais emblemáticas desta relação tempestuosa e criativa, é simbolizada por uma mosca que incomodava o escritor durante a entrevista em sua residência em Genebra. Enquanto falava sobre certo clima de disputa e inveja entre os dois, o inseto sobrevoava a sala branca e asséptica, entrando no enquadramento e posando no rosto e braço de Paulo. "Engraçado, em Genebra não tem mosca. É o Raul, mas eu não vou matar". Mas logo após, dá um tapa sorrateiro na mosca. E ela voou, persistente.

Outra polêmica é a parceria, dessa vez no palco, de Raul com Marcelo Nova, de Camisa de Vênus. Quando o cantor estava numa fase quase final de carreira, devido ao agravamento da doença no fígado, Marcelo o convidou para uma turnê da banda como participação especial, mas o retorno de Raul foi um sucesso, dando à banda uma visibilidade e profissionalizando-a.

Familiares e amigos dividem as opiniões sobre as verdadeiras intenções de Marcelo Nova. Ele se defende, justificando que, como fã e discípulo de Raul, era uma retribuição pelo que o cantor representava para sua formação musical. Segundo ele, jamais usaria Raul para ganhar fama.

A trilha sonora é Raul, Raul e Raul, mesmo quando rola um incidental de Elvis Presley é Raul, cover do rocker norte-americano, que vemos. Minha memória mais antiga de Raul é da sua interpretação de "O carimbador maluco" ("Plunct, plact, zuum"), em um especial infantil da Rede Globo em 1983. Aparentemente ingênua, a letra faz uma crítica à ditadura, já que o carimbador era a figura mais emblemática à censura no regime, autorizando ou não a divulgação dos produtos culturais e artísticos. Só recentemente, numa leitura mais refinada, percebi o dedo crítico de Raulzito nessa canção.


O filme tem seguido uma trajetória de  sucesso em todos as salas onde é exibido. E vale a pena mesmo assistir e entender o porquê, sem é claro tomá-lo como uma cinebiografia definitiva de Raul, o quanto este cara foi seminal para o rock nacional, e mais, como sua performance musical ainda contagia as novas gerações de roqueiros ou mesmo de novos ouvintes e sonhadores de uma sociedade alternativa.