sábado, 22 de outubro de 2011

Ser-tão Baiano



“Ser-tão baiano: o lugar da sertanidade na configuração da identidade baiana” (EDUFBA, 2011), de Cláudia Pereira Vasconcelos, é um estudo primoroso e envolvente sobre a baianidade, ou como o próprio título indica, sobre uma sertanidade baiana.

Tive acesso a seu texto no I Simpósio Internacional de Baianaidade (SINBaianidade), ocorrido neste mês em Seabra, Campus XXIII-UNEB, e tão logo o adquiri saí do mar caymmiano, uma das imagens mais influentes de uma “baianidade essencial”, para o sertão.

A começar pelas referências teóricas e temáticas, o texto de Cláudia Vasconcelos dialoga com o meu em “Acontece que eu sou baiano: identidade e memória cultural no cancioneiro de Dorival Caymmi” (EDUNEB, 2009).

Trilhamos percursos diferentes, tanto pessoais quanto acadêmicos, mas desaguamos na mesma seara. Ela, de origem baiano-sertaneja, interessada no não-lugar do sertão no discurso da baianidade; eu, de origem baiano-soteropolitana, preocupado com a centralidade desse discurso na identificação dos baianos a partir de Salvador.

Ao escolher Dorival Caymmi para discutir essa baianidade centralizadora, inclusive contradizendo o papel dado a ele como um dos responsáveis por esta identidade, o fiz porque ao mesmo tempo me sentia confortável e incomodado, sem com isso, é claro, sofrer crises de identidade.

Cláudia Vasconcelos não trabalhou especificamente um personagem, mas ao fazer um percurso pelos variados elementos simbólicos que foram inventados e construídos da baianidade, cita Dorival Caymmi. E é impossível não fugir dele, mesmo que se imagine o contrário, porque a sua persona, assim como sua obra, são indissociáveis da própria “ideia de Bahia”.

Não é somente esse ponto que me interessa em seu texto, mas também a sua discussão sobre as linhas de tensão que muitos baianocêntricos tentam ofuscar ou ocultar por detrás de uma suposta baianidade harmoniosa. Conflitos sociais, culturais, raciais pululam desta máscara que nos forçam a contemplar como a verdade de nós mesmos.

Escrito com uma linguagem fluida e pontual, a autora articula experiências intra e extramuros universitários para nos dar conta de sua inquietação acerca do tema. O seu percurso teórico-analítico começa com a própria “ideia de sertão” na constituição da brasilidade, recortando os conceitos do nacional, para o regional até chegar ao local, e os inverte em seguida para entender (e nós também) esse ir e vir das ideologias constitutivas sobre a identidade baiana.

Essa narrativa nos dá a compreensão dos vetores discursivos que fazem parte dessa trama, tecida e alinhavada, da invenção das identidades relativas às sociedades. Transitando com competência nas teorias de Hommi Bhabha, Stuart Hall e Pierre Bordieu, além de estudiosos brasileiros, como Milton Moura, Durval Muniz de Albuquerque Jr e Nísia Trindade Lima, a autora nos refina essas abordagens para nos levar a uma conclusão possível: a de que a sertanidade não tem espaço no texto da baianidade, devido ao discurso de poder reiteradamente impositivo e invasivo durante a construção desse território simbólico e geográfico chamado Bahia, a partir de Salvador e do Recôncavo.

E há uma saída para esta hegemonia? Se a profecia de Conselheiro de que “o sertão vai virar mar e o mar vai virar sertão” acontecesse como possibilidade de releitura da baianidade e assim deslocasse o centro de sua irradiação, a sertanidade não seria também questionada como centralizadora?

Em 2005, publiquei um ensaio sobre a representação da “ideia de sertão” que Euclides da Cunha criou em “Os Sertões”, e que posteriormente viraria uma sentença identitária do “ser nordestino”, quando esta região, anteriormente conhecida com Norte, passou a ser Nordeste.

A máxima euclidiana de que “o sertanejo é antes de tudo um forte” é voz corrente até hoje, mas a reveberação desta imagem está incompleta, porque, assim como os baionocêntricos desviam o nosso olhar para uma simetria comportamental, “a invenção do falo”, estudada por Durval Muniz Albuquerque Jr, mostra um sertanejo/nordestino cabra-macho, esquecendo a figura quase franksteiniana que Euclides descreve em seguida àquela frase inicial: “é um Hércules-Quasímodo” (o ensaio, por sinal, intitula-se “Hércules-Quasímodo: que sertanejo é este?”).

E se tomarmos o espaço do Nordeste como foco, ele mesmo é uma aberração geopolítica, que por duas vezes, no decorrer de sua configuração no século XX, inseriu e excluiu a Bahia de seu território pela evidente constatação de que ela não correspondia a uma nordestinidade perfeita.

A SUDENE assume a Bahia como nordestina, porque o “discurso da seca” a identifica como o Estado como a maior área de semi-árido da região. O que é um paradoxo, haja vista o norte de Minas Gerais ter sido área de atuação do órgão e nem por isso o mineiro de lá se vê como nordestino. Até porque a mineiridade é tão forte que empata em termos de concentração imagética e discursiva com a baianidade e outras idiossincrasias regionais.

Pensando na estruturação desses conceitos sobre Bahia e Nordeste, escrevi em 2010, para a edição comemorativa da Revista Nordeste, editada em João Pessoa, um artigo intitulado “Nordestinidade baiana”, no qual pontuo a dupla face de um baiano nordestino ou nordestino baiano, ou seja, como ele se vê ancorado a essas duas leituras de região: ora a Bahia como maior do que o Nordeste, devido à sua diferença cultural em relação aos outros Estados, comumente marcados pela unidade tendo Recife como centro; ora o Nordeste como maior do que a Bahia, na medida em que a ele está anexado por convenção geopolítica e, consequentemente, a todas as suas características sócio-econômicas.

Cláudia Vasconcelos flerta com isso tudo, demonstrando assim, competência na discussão do tema a que se propõe refletir. Foi providencial a descoberta de seu texto no SINBaianidade, porque deu ao meu um outro prisma de reflexão. A mesa da qual fez parte, “Quem cabe na baianidade?”, foi uma das mais concorridas, suponho eu, devido à própria provocação que a pergunta encerra.

Nesta baianidade, cabe, sim, Cláudia, o sertão. Aliás, foi em Seabra, sertão, Chapada Diamantina, centro geográfico da Bahia, para onde convergiram todas as Bahias, principalmente aquela do Recôncavo de Roberto Mendes e de Mateus Aleluia. Para que esta “inserção” aconteça, é preciso que os bons ventos de sua fala continuem levando para longe a cortina de poeira do essencialismo cultural.

A proposta é realizar a segunda edição do SINBaianidade, em Irecê, outra cidade sertaneja. Para mim, simbolicamente será uma coincidência especial, pois lembra Caymmi em duas passagens de sua biografia.
Uma, remonta à sua tenra idade. Segundo sua neta e biógrafa, Stella Caymmi, o primeiro exercício de composição dele não tinha o mar ou Salvador como tema, embora evidentemente essa paisagem praieira fosse constante em seu cotidiano, mas foi o sertão.

Intitulada no “No Sertão”, o adolescente Dorival Caymmi, em 1930, com 16 anos, cantava “Lá no sertão nasce a vida e a alegria no coração / (...) Nosso amor nasceu pelo São João, / Na roda brejeira, na fogueira ao soluçar do violão.”

O próprio Caymmi revelou que era uma letra cheia de lugares-comuns, bem no estilo modinheiro. Mesmo que tenha sido uma “brincadeirinha”, talvez inspirada em Catulo da Paixão Cearense e outras toadas de sua época, Caymmi não deixa de se interessar por outras referências culturais. Aliás, em seu acervo, disponibilizado na Fundação Tom Jobim, é possível encontrar o início de outra partitura com o título “Vou embora pro sertão”.

E Caymmi quase foi para o sertão mesmo. Esta é a segunda passagem de sua biografia a que me refiri. Como emprego estava difícil em Salvador para o jovem Caymmi, ele tentou, em 1935, aprovação em concurso público estadual para uma vaga de coletor de impostos em Irecê. Ficou em segundo lugar.

Enquanto aguardava ser convocado, caso o primeiro lugar desistisse, Caymmi ganhava dinheiro vendendo bebidas de porta em porta. Cansou-se de carregar mostruário pesado e de esperar sair no Diário Oficial sua convocação. Pegou seu violão e foi para o Rio de Janeiro em 1938. E foi lá, terra da Rádio Nacional, que ele bombou.

Já imaginou um Caymmi cantor e compositor de modinhas ou toadas sertanejas, o ambiente marinho trocado pela caatinga e, em vez de “O que é que a baiana tem?”, “O que é que a sertaneja tem?”. Se Irecê, segundo o próprio relato de Cláudia Vasconcelos, quando lá participou de um projeto social voltado para a agricultura, foi uma experiência especial em sua trajetória, porque não poderia ocorrer o mesmo com Caymmi?

É, mas o destino fez com que a sua estrada não fosse de terra batida, mas a das ondas verdes do mar de Yemanjá.

Parabéns, Cláudia pelo trabalho. Interessado que sou também pelo sertão, já estive envolvido com os estudos conselheiristas e euclidianos, esse seu estudo vem complementar minhas pesquisas sobre a baianidade. E para ficar.

domingo, 16 de outubro de 2011

I Simpósio Internacional de Baianidade




A UNEB, por meio de seus Departamentos, especialmente DCHT-Campus XXIII, que sediou o I SINBaianidade, potencializa a sua conformação de ser uma Universidade imprescindível para a Educação Superior no Estado, a partir de projetos científico-acadêmicos pontuais de afirmação institucional.

Presente na maioria das regiões da Bahia, a UNEB não tem como órgão suplementar um fórum de pesquisa e extensão multidisciplinar voltado para o debate sobre as identidades baianas.

Com o SINBaianidade, idealizado pelo professor, pesquisador de Jorge Amado e diretor do Campus XXIII, Gildeci Leite, deu mostras reais e concretas de que é possível congregar artistas, intelectuais, comunidades culturais e religiosas, saberes e pensamentos orais e letrados para dialogar sobre nossas experiências e vivências baianas.

A programação do evento teve palestras de Muniz Sodré, João Jorge (Olodum), Júlio Braga, Antônio Torres, Capinan; exibição de filmes, como "Jardim das Folhas Sagradas", de Pola Ribeiro, e "Bahêa, minha vida", de Márcio Cavalcante; shows de Mateus Aleluia, Xangai, Roberto Mendes, além de debates com professores, pesquisadores, estudantes em diversas mesas-redondas nos quatro dias de evento.

Fui convidado para participar da mesa "Claves e Acordes da Baianidade", ao lado do Prof. Dr. Armando Alexandre Castro (UFBA), "Axé music e baianidade"; do Prof. Ms. Carlos Barros, "As baianidades em Daniela Mercury e Ivete Sangalo: construções a partir das representações coletivas dos públicos do artista"; do Prof. Ms. Clebemilton Nascimento (UNEB), "Outras baianidades: representações de gênero e outros marcadores sociais da diferença nas letras dos pagodes baianos", e de César Rasec (Mestre em Cultura, jornalista e pesquisador musical), "Do trio elétrico à Axé Music: um novo olhar sobre a baianidade".

Debatemos com muitos momentos de calorosa intervenção do público sobre o valor acadêmico de nossas pesquisas, o que tem demonstrado que a baianidade musical é um dos pontos mais controvertidos dessa ideia de Bahia, até porque a música produzida aqui é mais popular do que a literatura e por isso a sua visibilidade é espontânea, vide os atores que a dinamizam e a força empresarial e mercadológica que a caracteriza.

O resultado deste evento, no qual a voz corrente era de que a iniciativa foi exemplar para as outras Universidades, não poderia ser outro: positivo. Embora ainda carente de estrutura maior para congregar o público com conforto, o esforço de todos da Comissão Organizadora para suprir essas lacunas deu o tom da exequibilidade de realização fora de Salvador de um evento sobre a sua hegemonia cultural na Bahia.

Deslocamos de um centro para outro (Seabra é o centro geográfico do Estado) as várias Bahias.

Esperamos que a próxima edição seja mais abrangente, desta vez, com o Núcleo de Estudos da Baianidade da UNEB criado para consolidar mais ainda nossos objetivos.




sábado, 1 de outubro de 2011

João do Rio, um flâneur carioca


João do Rio


João Paulo Emilio Cristóvão dos Santos Coelho Barreto (1881-1921), nasceu antes do Rio de Janeiro tornar-se Capital Federal, nos "buliçosos" anos que fecharam o Império de D. Pedro II. Passou a ser conhecido por João do Rio nos anos da República, quando a imitação européia de viver, comer, beber, se vestir, além de fazer arte, influenciou as mentes da elite social e cultural brasileira, especialmente a carioca.

A leitura que João do Rio fez deste vanguardismo estético na literatura resultou uma obra "aclimatada" ao gosto nacional bastante singular entre os escritores de sua geração.

A começar pelo próprio perfil tanto literário quanto pessoal dele, talvez incomum numa sociedade letrada avessa a rasgos de ousadia artística e de comportamento.

Mulato, homossexual e gordo, isto não era impeditivo para João do Rio se esconder. Fino, inteligente e simpático, conquistou o público elitizado e popular com sua lavra bem desenhada e irônica ao traçar um Rio de Janeiro atrás do cartão postal de cidade com pretensões de ser a Paris dos trópicos.

Ele saía às ruas, com sua performance de flâneur, tal qual Baudelaire, e vestido em trajes bem cortados e caros, tal qual Oscar Wilde, para captar a "belle époque" carioca de todos os ângulos.

"A alma encantadora das ruas" é um livro de crônicas, cuja leitura é imprescindível para conhecermos este período no qual a literatura, pensando aqui no livro de Nicolau Sevcenko, era vista como missão, na medida em que os escritores assumiam um papel de intérprete do Brasil em fase de (re)definição identitária, com tantos problemas sociais e políticos pós-Abolição.

Tornou-se membro da Academia Brasileira de Letras e levou para a Casa de Machado de Assis o que nas torres de marfim era visto como "mundano". Falar de personagens que não estavam nos romances tradicionais foi inclusive uma forma de ascensão de um gênero textual pouco estudado e aceito pela crítica literária de então, mas que durante o século XX verá o aumento de leitores e o surgimento de cronistas exemplares, como Rubem Braga, Carlos Drummond de Andrade, Inácio de Loyola Brandão, Luis Fernando Veríssimo, João Ubaldo Ribeiro...

João do Rio em HQ será o máximo da divulgação em círculos de leitores pouco interessados em autores antigos, devido talvez a linguagem ou temas passadistas. Com o visual do graphic novel, tão presente hoje na editoração de obras literárias, o leitor universitário, aquele com quem tenho mais proximidade, passará a vê-lo com mais interesse, até porque serão formadores de outros tantos como professores de Literatura nas escolas e disto não podem prescindir.

João do Rio é finura de personalidade e de estilo, sem discriminar a patuléia e os "marginais" do Rio de Janeiro, um microcosmo do Brasil urbano do início do século XX. O funeral do escritor que morreu jovem, aos 40 anos, de ataque cardíaco, foi um dos mais concorridos da cidade, só visto igual no de Getúlio Vargas e Carmen Miranda.

Foi ovacionado pela rua que tanto celebrou.


São Paulo, sábado, 01 de outubro de 2011
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ROCK IN RIO? NÃO, JOÃO DO RIO

Allan Sieber e Allan Rabelo produzem livros em que adaptam para HQ a obra do cronista, autor de "A Alma Encantadora das Ruas"

Allan Sieber e Allan Rabelo
Acima, em adaptação de Allan Sieber para o conto "Pequenas Profissões", marinheiro é enganado no porto por ambulante

ROBERTO KAZ
DE SÃO PAULO

É 1916. João do Rio bebe vinho, em um camarim, ao lado da dançarina americana Isadora Duncan (1877-1927).
Ela começa a se despir, após uma apresentação no Theatro Municipal do Rio, mas é prontamente interrompida por ele: "Querida, por favor, não perca o decoro. Troque-se atrás do biombo."
Ela brinca -"Já viste mais que isso, João"-, relembrando o banho que tomara, nua, em uma cachoeira da Tijuca. "Parece ter gostado."
"Puro prazer estético", responde João do Rio.
A cena, desenhada por Allan Rabelo, faz parte do projeto de adaptação das obras do cronista João do Rio (1881-1921) para as HQs.
Há duas em andamento: a de Rabelo (com roteiro de S. Lobo para a editora Barba Negra) e a do cartunista Allan Sieber (para a Desiderata).
O trabalho de Rabelo e S. Lobo deve ficar pronto em 2013. Por ora, eles estão adaptando "A Alma Encantadora das Ruas", coletânea das crônicas publicadas por João do Rio no jornal "A Gazeta de Notícias" e na revista "Kosmos", entre 1904 e 1907.
Os dois, que já trabalharam na adaptação "Irmãos Grimm em Quadrinhos" (Desiderata), tomaram a liberdade de criar personagens, como Massarelo Lopes, imigrante que dá golpes baratos, faz michê e tem um caso com João.
Se ativeram, no entanto, à linguagem da época. Assim, falam do suposto "flirt" (flerte) do cronista com Isadora Duncan, quando ela esteve no Rio em 1916.
As crônicas de João do Rio retratavam, com afeto, um submundo de personagens marginais que compunham a fauna urbana carioca no começo do século 20.
Eram ciganos, prostitutas, tatuadores, marinheiros e vigaristas que esfolavam gatos mortos para vendê-los, aos restaurantes, como lebres (daí a expressão "comprou gato por lebre").
João do Rio, ele mesmo, não representava os padrões vigentes: andava de fraque verde, era gordo (tinha hipotireoidismo) e homossexual.
Segundo João Carlos Rodrigues, autor de "João do Rio - Vida, Paixão e Obra" (Civilização Brasileira), a faceta "maldita" das crônicas refletia um lado também maldito do autor. "Ele era um dândi, que frequentava a alta sociedade mas era contra ela."
Essa postura irônica foi uma das razões que motivaram o cartunista Allan Sieber a também fazer uma adaptação, a ser lançada em 2012.
"No começo, sugeriram 'O Triste Fim de Policarpo Quaresma', do Lima Barreto, que não combinava com o meu traço", disse Sieber. "Quando trocaram pelo João do Rio, topei, porque ele tinha aquele ar meio cínico."
Sieber, quadrinista da Folha, dividiu sua versão em três partes. Baseou-as no conto "O Homem de Cabeça de Papelão" e nos livros "Dentro da Noite" e "A Alma Encantadora das Ruas".
Diz quase não ter alterado a narrativa: "Eu ficava travado com a reconstituição histórica, mas o restante estava ali, pronto". Preocupou-se em não fazer "um livro condensado para idiotas, um 'João do Rio for Dummies'".
Também no livro de Sieber há cenas em meio a prostitutas, michês e trombadinhas. Numa delas, o texto diz: "As meretrizes mandam marcar corações com o nome dos amantes. Se brigam, removem a tatuagem e marcam o mesmo nome no calcanhar. É a maior das ofensas: nome no chão, roçando a poeira...".

quarta-feira, 28 de setembro de 2011

A laje dos que olham para cima


Vista da Baía, a partir do alto de um bairro do subúrbio de Salvador


O brasileiro é sonhador. Sonha com o carro 0km, com a tevê digital, com a casa própria... Esse último desejo talvez seja o que movimenta a força física e mental para sua realização, vide o déficit habitacional no Brasil de quase 70% da população.

Com a expansão do crédito imobiliário, os brasileiros que ascenderam na escala social nos últimos 10 anos têm aproveitado para conseguir seu apartamento ou casa, outrora só possível se entrassem na lista de desabrigados devido a alguma catástrofe ou expulsos de uma ocupação ilegal para receber uma habitação popular.

Aos resistentes, quando compram um terreno, ainda passam pela dificuldade de construir. Com pouco dinheiro, a casa é erguida a conta-gotas, o que pode levar anos, mas pelo menos, o sonho da casa própria se materializa, às vezes, com o sonhador morando sem o imóvel estar com condições de moradia.

Sem teto, a laje é o limite que os sem-teto sonham . "Bater a laje" é uma realização inigualável na vida dos sonhadores. Já virou um rito de passagem pela qual não somente o dono, mas toda a vizinhança tem que experimentar, até porque os vizinhos, se não vivenciaram essa ação comunitária no seu imóvel, um dia será a sua vez de congregar todos na construção de sua subida.

Na laje, se faz de um tudo. Lavar e estender roupa, tomar banho de sol, empinar pipa, promover festa à base de churrasco e pagode... No Profissão Repórter desta semana, o tema foi este, a laje como espaço de sociabilidade nas periferias de São Paulo e Rio de Janeiro.

Como no Rio de Janeiro as favelas tem localização privilegiada nos morros circundantes à Baía de Guanabara, os donos têm uma sensação de que não precisa pagar caro por uma visão do mar. Subir à laje, é como subir à cobertura de um apartamento nas avenidas Vieira Souto ou Atlântica.

Em Salvador, não é diferente. A faixa de terra que vai do Porto da Barra até o subúrbio ferroviário nos dá momentos de contemplação da Baía de Todos os Santos, seja na cobertura da Morada dos Cardeais, na Vitória, o metro quadrado mais caro do Nordeste, até na laje de uma casa no Alto do Cabrito, um dos metros quadrados mais populosos e pobres da cidade.

E por falar em Cabrito, foi lá, na década de 70, antes de virar conjunto habitacional, onde eu passava temporadas no sítio de minha avó. Casa de telha vã, não precisávamos escalar para ver o pôr-do-sol no fundo da baía. Dali mesmo, da varanda, víamos o sol dar lugar a lua, ouvindo as cigarras e os grilos.

Quando queríamos ver o mar de uma altura maior, inclusive os prédios da Cidade Alta, sentávamos no balanço preso a uma mangueira e pedíamos que nossos tios, sem pena, nos empurrássemos com tanta força que a sensação era de que estávamos voando para lá e mergulhando nas águas da baía.

Hoje, no Cabrito, tudo virou laje, mas a visão continua exuberante.


domingo, 25 de setembro de 2011

Faça Letras!

Sou leitor assíduo da Revista Piauí desde seus primeiros números. Encontrei a melhor forma de ler matérias longas, com profundidade de análise e diversidade temática, não encontradas na maioria das revistas nacionais.

Uma das seções de que mais gosto é Esquina, que descreve em pequenos perfis a vida de personagens anônimos, na maioria das vezes flagrados por seus ofícios e afazeres pouco usuais ou desconhecidos do grande público.

Na edição de setembro, li o perfil de um metalúrgico que quer estudar Letras para ter mais intimidade com os poetas Drummond e Cecília Meireles.

Transcrevo abaixo o texto para nos estimularmos a ter mais valor pelas Letras, que está carecendo realmente de interessados em ensino e pesquisa de Literatura e Língua.

Faça Letras! Tem que saber e gostar de ler, no mínimo. Aos aventureiros, é melhor praticar rapel, montanhismo, jump, são atividades menos arriscadas.



O torneiro e o poeta

Inspirado por Drummond, metalúrgico quer viver dos seus versos
por Fábio Fujita
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á três anos, quem ousasse falar de poesia a Rodrigo Inácio seria recebido com um olhar atravessado de reprovação. Era melhor que ficasse longe, guardando um perímetro seguro do interlocutor. O jovem metalúrgico tinha uma opinião fechada sobre quem gostava de versos e rimas. “Eu achava que poesia era coisa de viado”, lembrou, sem tergiversar. Tudo mudou quando precisou correr atrás de palavras definitivas para se dirigir a uma moça. Ciente das próprias limitações lexicais, viu-se obrigado a consultar o grande repositório da sabedoria universal e foi ao Google. No campo de busca, Inácio digitou “Frases bonitas”. No primeiro clique, deparou-se com o poema “No meio do caminho”, de Carlos Drummond de Andrade. Os versos que leu na tela não contribuíram para melhorar seu juízo sobre os poetas. “O cara deve ser idiota para escrever um negócio desses”, concluiu, no que foi a sua primeira crítica literária.
Inácio não se deu por derrotado. Por ironia, acabou gostando mesmo foi de um verso atribuído erroneamente a Drummond na internet – aquele que diz que “A dor é inevitável, o sofrimento é opcional”. Aquilo, sim, soava bem. Esmerou-se na escolha da fonte e despachou o verso à sua bela, que respondeu dizendo ter achado “interessante”. A reação foi suficientemente animadora para incentivar Inácio a gastar mais Drummond para cima da moça – agora do legítimo, não do falsificado. Num sebo, comprou O Amor Natural para dar-lhe de presente. Não sabia, claro, que aquele era o livro de poemas eróticos do autor, no qual línguas lambem pétalas vermelhas e o poeta suga e é sugado pelo amor. O rapaz se envergonhou de lembrar do caso. “Você é um besta de me mandar um livro daqueles”, foi a resposta que a menina lhe deu.
Para não repetir gafes dessa magnitude, Inácio passou a estudar com afinco a obra de Drummond. Ficou abismado quando leu “Memória” (“As coisas tangíveis/ Tornam-se insensíveis/ À palma da mão/ Mas as coisas findas/ Muito mais que lindas,/ Essas ficarão”). Era muita frase bonita para um poema só. Inácio ficou de bem com o autor mineiro. Mas continuou encucado com “No meio do caminho”. “Só depois de passar um longo tempo amistoso com Drummond é que fui entender e gostar desse poema”, explicou, em um notável exercício de revisão no qual muitos críticos deveriam se espelhar.
De Drummond para outros autores foi um pulo. Inácio continuou exigente. “Vinícius de Moraes era muito mulherengo”, não demorou a constatar. Experimentou também um pouco de prosa. Encantou-se com Clarice Lispector. Gostou de A Hora da Estrela e A Paixão Segundo G. H. “Acho que, no fundo das palavras dela, há um certo tom de feitiçaria”, ponderou. “Ela era bem doida. Tadinha, morreu de câncer.”
Aos 21 anos, Inácio mora em Diadema, na periferia de São Paulo. Para ir e voltar do serviço, no bairro do Ipiranga, na capital, pega seis conduções diárias, entre ônibus, trólebus e trem. Estudou só até o 3º ano do ensino médio. Como preparador de torno no ramo industrial, ganha dois salários mínimos. Mesmo assim, pagou 200 reais num raro disco de vinil intitulado Antologia Poética, em que Drummond declama seus versos.
Sem receio de melindrar seu ídolo, Inácio disse que queria comprar também o disco de poemas de Cecília Meirelles. “Mas o dela está a 450”, lamentou, após pesquisar na internet. A triste verdade é que os áureos dias de Drummond já se foram. “Hoje gosto mais da Cecília”, admitiu o torneiro. “Não estou desmerecendo Drummond, mas a Cecília, além de ser linda, muito linda, escreve muito bem”, derreteu-se.
ara o jovem metalúrgico, o único problema com sua paixão pela poesiaé não ter com quem conversar. No serviço, há quem ache que Rodrigo Inácio é viado. “Mas eu não ligo”, assegura. A única pessoa com quem fala sobre poemas é uma garota que conheceu num ponto de ônibus. Ele puxou assunto quando viu que conhecia o livro que ela lia – Pollyanna. “É sobre uma menina bobinha que acha que tudo no mundo é belo”, explicou.
Com familiaridade crescente com as letras, era natural que Inácio acabasse tendo vontade de desenvolver sua própria produção poética. Começou a fazer poemas, alguns sobre amores malfadados, outros inspirados pelas coisicas do cotidiano. “Já escrevi um poema porque vi um pássaro voando.” Diz já ter pelo menos uns trinta. Tudo na gaveta. “A crítica é inevitável, mas tenho medo de as pessoas acharem os poemas tristes”, alegou para justificar o ineditismo. Mas o pior mesmo, disse o torneiro, é quando alguém lê e não entende os versos. Poesia não é remédio para precisar de bula.
O poeta Rodrigo Inácio hesitou, mas criou coragem e mostrou alguns de seus escritos tirados de uma pasta. Um poema chamado “Canção esmorecida” trata da insignificância da existência e da passagem inexorável do tempo. “Apenas uma árvore triste que sou/ Tão fria e tão silenciosa/ Que não sente o tempo passar/ Que não sabe se ama ou gosta”, dizem os primeiros versos. A estrutura se repete nas estrofes seguintes. A última delas é melancólica: “Apenas uma simples hera que sou/ Que olha o mundo inteiro passar/ Que observa cada rosto/ Mas que não sabe até quando irá durar.”
O uso de “hera” e outros termos do registro mais erudito é herança daquele que um dia desdenhara. “É Drummond.” Inácio gostaria de trocar o torno pela pena. Chegou a pedir a uma amiga, que é professora, aulas particulares de metrificação. Como pagamento, está disposto a oferecer o próprio disco do Drummond, o seu maior tesouro.
Daqui a um ou dois anos, pretende largar a metalurgia e começar a trabalhar com tecnologia da informação, uma carreira que paga bem e lhe permitirá conciliar a sonhada faculdade de letras. Para isso, será inevitável estudar ciências exatas para o vestibular. Inácio não vê essa perspectiva com serenidade. “O cara que descobriu a matemática, mano, tem que morrer de madeirada”, queixou-se. Vai ser uma pedra no seu caminho.

sexta-feira, 2 de setembro de 2011

Universidades Federais X Universidades Estaduais na Bahia

Sou egresso do Instituto de Letras da UFBA, formado há 12 anos. Nesta Universidade eu aprendi a ser um profissional interessado e competente na área a que me dedico hoje como professor da UNEB, da qual sinto orgulho de fazer parte, tanto quanto docente quanto como coordenador de curso.

Na UFBA, depois de retornar do mestrado na UFPB, fiz seleção para ser professor substituto de literatura portuguesa. Dividi o mesmo espaço com ex-colegas, então professores efetivos, e ex-professores, que se tornaram colegas de trabalho.

Vivi os dois lados dessa experiência acadêmica. Eu já estava aprovado na UNEB, mas esperava ser convocado antes de terminar o contrato da UFBA. Terminou por eu ter ficado em ambas por uns seis meses. Era a própria realização profissional para quem sempre sonhou ser professor universitário aprovado em concurso ou em seleção pública.

Há cinco anos na UNEB, conheci com mais profundidade os problemas desta Instituição, principalmente na falta de estímulo à carreira docente, com a limitação de progressão ou promoção pelo Governo, além, é óbvio, da falta de estrutura física ou carência de professores.

Assim mesmo, peguei gosto pela UNEB, pois foi através dela que publiquei meu livro, cresci profissionalmente como professor e pesquisador, e conheci pessoas maravilhosas, entre alunos e colegas.

Passei por duas greves durante o Governo Wagner, nas quais apoiei a nossa demanda por aumento de salário e condições de trabalho decente, frente à demanda de educar jovens estudantes e futuros professores de Letras.

Fico me perguntando por que o Governo do Estado gasta mais publicidade divulgando as novas Universidades Federais do que UEFS, UNEB, UESC e UESB. Penso que a intenção é sucateá-las, torná-las invisíveis, porque o senso comum, inclusive no Governo, diz que Federal é melhor do que Estadual.

Ledo engano, inclusive é sabido que tem universidades estaduais melhores do que as federais, como é o caso da USP e UNICAMP. Até no Nordeste, a UEPB (Paraíba) paga salários melhores do que a federal local.

Aqui na Bahia, os estudantes da UFRB paralisam as atividades em todos os centros da Instituição para denunciar falta de tudo.

Na campanha à releição ao governo estadual, o Sr. Jaques Wagner respondeu, no debate da Tv Aratu, ao questionamento de uma professora da UEFS sobre a situação das estaduais com uma fala em prol das federais que estavam já instaladas, como a UFRB e UNIVASF.

Penso que podemos conviver na mesma região com duas universidades. É benefício para todos e dinamiza-se o mercado de trabalho. Mas a que preço? Investimento em umas e corte de verba em outras?

domingo, 28 de agosto de 2011

Ser Alice ou Pollyana por duas horas


Indignado
Decadência moral.
Nem no domingo a gente tem sossego com esses políticos sem-vergonhas, corruptos, insanos, imbecis...
Abro jornais e revistas e vejo esses caras tendo Ibope. Estou cansado de ler notícias de falcatruas e roubalheiras com o dinheiro público. Trabalho horrores, dou minha cota social à educação pública do País (falida ou pré-falimentar) e esses ministros, deputados, prefeitos, governadores sacaneando com o povo.
Ah, mas tem políticos bons e maus, argumentam uns. Mas o próprio Estado possibilita isso, dando brechas constitucionais para eles desfilarem sua estupidez e arrogância. Quem não é desonesto, sente, mínimo que seja, a vontade de usurpar. Ninguém é santo e o ser humano é inumano nessas horas.
Como lembrou bem Luiz Freire, esse País é "cronicamente inviável". Vou andar de bike para fugir das más notícias do dia. Dá uma de Alice ou de Pollyana por duas horas. O pior de tudo que é na rua que vemos o resultado dessa safadeza política: mendigos, menores abandonados, trânsito caótico, lixo, buraco, ladrões, postos de saúde mal-estruturados, módulos policiais desativados...
Só xingar não adianta, infelizmente.

sábado, 6 de agosto de 2011

Brutalidade a Km/h


Enquanto esperava meu carro ser lavado na concessionária onde o comprei, assistia a uma reportagem no programa Hoje em Dia, da Record, sobre violência no trânsito. Segundo a matéria, a polícia de São Paulo registra por dia 70 brigas entre condutores de veículos e pedestres. Na maioria dos casos, as agressões são verbais, mas em vários casos resultam em mortes.
Em Salvador, onde o trânsito está caótico devido à falta de infraestrutura viária para atender a demanda de milhares de carros licenciados ao mês, a ocorrência de mortes por acidentes cresce na mesma proporção.
Já me envolvi em dois acidentes sem vítimas. Na primeira, assumi meu erro, embora o outro motorista também tivesse culpa pelo fato de os faróis traseiros estarem apagados, quando frenou. A minha desatenção em estar dirigindo conversando animadamente com um amigo, além da pouca iluminação e dos buracos da via, contribui para o choque.
Desci do carro um pouco alterado devido ao susto, mas me controlei porque, independentemente de um ou outro assumir a culpa, meu seguro pagaria o estrago. Identifiquei-me, dei-lhe meu cartão de visita e segui meu caminho.
No outro caso, uma semana depois de ter recebido o carro novinho, fui atingido por uma Kombi de lotação em Bom Despacho, Ilha de Itaparica. Era antevéspera de Ano Novo, meio-dia, sinalizei para entrar na rua, mas a desatenção do outro condutor causou o acidente.
Minha reação, primeiramente era de sair do carro já brigando. Mas respirei, peguei a máquina de fotografia e comecei a registrar. Enquanto ele vociferava, dizendo que eu era o culpado por ter sinalizado já perto de entrar na via, eu justificava calmamente a minha conduta. Um amigo meu aparece e me dá apoio. Depois chegam dois policiais que também apoiam a minha versão. Tranquilo, fiz um boletim de ocorrência no posto policial, o motorista assumiu a culpa e passei meu Reveillon vivo e sem ter sido agredido.
Casos de pessoas que se agridem até a morte nas ruas do Brasil por motivos fúteis são noticiados diariamente. Antes de fechar este post, leio mais uma notícia de barbárie no trânsito: um cabeleireiro é assassinado por ter reclamado da buzina de um motorista estressado no engarrafamento.
Fato ocorrido em Salvador, me causou uma indignação tão forte que me comovi só em ler a manchete do jornal. O cabeleireiro teria dito: "Tá vendendo buzina?", ao se incomodar com a poluição sonora que o condutor fazia. Ao desafogar o tráfego, o homem teria dito que ia "pegar" a vítima. 20 minutos depois, ele retorna e cumpre a promessa.
Segundo a polícia, o dono do veículo, que pode ser o mesmo que atirou, é ex-presidiário, recém-saído da pena e com diversas passagens na polícia por roubo e receptação de carros.
O stress inicial provocado por uma pressa que ninguém sabia o porquê, deu lugar a uma outra, mais insana e inumana, a de matar uma pessoa.
É por uma dessas razões que penso cada vez menos tirar meu carro da garagem. Mas como pedestre ou ciclista, o perigo aumenta, porque o carro virou arma na mão daqueles que não nos querem na sua frente.

segunda-feira, 25 de julho de 2011

Meu bairro


Panorâmica do Desterro, Pelourinho, Mouraria e Saúde
a partir da cobertura de meu prédio (Clique na imagem para ampliar)


A decadência de um bairro pode ser medida pelo grau de abandono dos poderes públicos. Os moradores começam a se mudar para outros lugares que correspondam a suas expectativas de retorno aos impostos pagos.

Mas quando toda uma cidade se vê abandonada, para onde ir?

A sensação e a certeza de que Governo e Prefeitura não assumem responsabilidades institucionais para dar uma boa qualidade de vida aos habitantes de Salvador nos deixam órfãos. A quem recorrer? Câmara Municipal, Ministério Público , Ouvidoria...

Assim mesmo, a demora na resolução do problema torna difícil, senão impossível, qualquer planejamento coletivo e individual em diversas áreas, como educação, saúde, segurança, emprego e cultura.

O Centro Antigo virou de novo, depois da reforma do Pelourinho, a cereja do bolo das futuras intervenções estruturais para a Copa do Mundo. Nazaré, onde eu moro, terá um fluxo de pessoas e carros intenso, extrapolando o limite de uma mobilidade fluida e tranquila neste período.

Muito me agrada andar pelas ruas de Nazaré, especialmente Campo da Pólvora, Desterro, Jardim Baiano, Saúde e Mouraria, localidades que são integradas pela Av. Joana Angélica, mas durante os dias úteis da semana, a população flutuante atinge três vezes mais o número de seus moradores, tornando quase insuportável o bem-estar de um bairro outrora calmo, charmoso e convidativo a um passeio.

A mendicância, o tráfico de drogas, a desordem no trânsito, a falta de limpeza das ruas, as calçadas esburacadas, o comércio informal, tudo isso colabora para a fuga de moradores antigos para outros bairros.

Nasci e morei por muito tempo na Cidade Baixa, que há 25 anos, quando me mudei, já estava em estágio avançado de abandono, especialmente em Roma. Há 15 anos, eu moro em Nazaré. Primeiramente, na Ladeira da Fonte Nova; depois, na Ladeira do Desterro.

Aprendi a conviver com a degradação social e arquitetônica desta área, mas com a esperança de que, independentemente das obras da Copa na Fonte Nova e no seu entorno, a população vai voltar de novo seus olhos ao Centro Antigo pelo simbólico motivo de que é aqui que a cidade mais se identifica.

Só em imaginar que isto pode ocorrer, já sinto prazer de morar aqui.

domingo, 24 de julho de 2011

Apologia da preguiça, por Adauto Novaes


Cena clássica do cinema brasileiro: Macunaíma, interpretado
por Grande Otelo, se espreguiçando
em filme homônimo de Joaquim Pedro de Andrade


Hoje, domingo de sol, neste inverno baiano, acordo e começo a ler as notícias do dia. A morte de Amy Winehouse é destaque em todos os jornais e sites de notícias, mas que já era um fim anunciado, embora acreditássemos que ela passaria por uma outra "rehab".

Embora seja um clássico dia de descanso, ócio, preguiça e lazer, o capitalismo da indústria e do comércio impõe que trabalhadores vão à labuta e nós, consumidores, nos cansemos nas compras para dar conta do tempo que não deu tempo durante a semana para fazer.

E eu tenho muita coisa para fazer mesmo, mas todas prazerosas, porque é a realização de meus desejos e não a imposição dos outros: ir à feira comprar verduras para fazer um cozido, andar de bicicleta pela orla, tomar um café final da tarde com os amigos, encaixotar meus livros para o início da reforma de meu apartamento...

Fiquei estimulado mais ainda para fazer esse roteiro dominical depois que eu li o ensaio abaixo sobre a preguiça, que será tema de um ciclo de palestra em quatro cidades brasileiras, organizada por Adauto Novaes. Pena que não vem a Salvador, porque seria uma excelente oportunidade para nós baianos refletirmos sobre uma baianidade "preguiçosa" (e perniciosa, preconceituosa) que tentam nos colar e que achamos ser mesmo nossa identidade.

Precisamos mostrar que a "nossa" preguiça tem um nível muito mais refinado de compreensão do que essas piadinhas de botequim de novela das oito, como vi nesta semana em Insensato Coração.

Mestre Caymmi é que sabia das coisas... e viveu quase cem anos.



São Paulo, domingo, 24 de julho de 2011


ENSAIO

Apologia da preguiça

O sequestro do nosso tempo pelo trabalho
RESUMO
Em tempos de tecnociência, permanece irrealizada a utopia da libertação do homem pelas máquinas: nunca se trabalhou tanto, e o tempo livre jamais esteve tão fora da pauta. Ora estigmatizado na ordem produtiva, ora exaltado na tradição filosófica, o preguiçoso é hoje o símbolo do tempo livre para o pensamento.

ADAUTO NOVAES
O trabalho deve ser maldito, como ensinam as lendas sobre o paraíso, enquanto a preguiça deve ser o objetivo essencial do homem. Mas foi o inverso que aconteceu. É esta inversão que gostaria de passar a limpo.
Malevitch, "A Preguiça como Verdade Definitiva do Homem"

SABE-SE QUE uma única palavra é suficiente para arruinar reputações e, entre todas, preguiça é uma das mais suspeitas e perigosas. Ao longo dos séculos, foi carregada de significações contraditórias e impressionantes variações.
Dela decorre longo cortejo de acusações bizarras, mas também sabe ser tema de obras de arte, poesia, romance, pinturas, reflexões filosóficas: o preguiçoso é indolente, improdutivo, nostálgico, melancólico, indiferente, distraído, voluptuoso, incompetente, ineficaz, lento, sonolento, silencioso. Preguiça e trabalho guardam um misterioso parentesco, quase simétrico e especular.
Para o preguiçoso, "é preciso ser distraído para viver" (Paul Valéry), afastar-se do mundo sem se perder dele; exatamente por isso, é acusado de não contribuir para o progresso.
Além de praticar crime contra a sociedade do trabalho, o preguiçoso comete pecado capital. Pela lógica do mundo do trabalho e da igreja, ele deve sentir-se culpado, pagar pelo que não faz.
Mais: pensadores como Lafargue, Stevenson, Bertrand Russell, Jerome K. Jerome, Marx e Samuel Johnson apostaram no desenvolvimento técnico como possibilidade de liberação do trabalho. Erraram: na era da tecnociência, nunca se trabalhou tanto e nunca se pensou tão pouco. Assim, o espírito tende a se tornar coisa supérflua.

O QUE FAZER Ao pensar sobre o fazer, o ocioso pode prestar um grande serviço e ajudar a responder à velha questão moral: o que devo fazer? Dependendo da resposta, teremos diferentes definições do que seja o homem, a política, as crenças, o saber, nossa relação com o mundo, e, principalmente, nossa relação com o trabalho. A resposta pode nos dizer não apenas o que fazemos mas também o que o trabalho faz em nós.
Hoje, maravilhosas máquinas "economizam" o trabalho mecânico, mas criam novos problemas: primeiro, uma espécie de intoxicação voluntária, isto é, "mais a máquina nos parece útil, mais ela nos torna incompletos" (Valéry).
A máquina governa quem a devia governar; daí decorre o segundo problema, bem mais complexo: tantas potências auxiliares mecânicas tendem a reduzir "nossas forças de atenção e de capacidade de trabalho mental", o que se relaciona à impaciência, à rapidez e à volatilidade nunca antes vistas.
Assim escreveu Paul Valéry (1871-1945): "Adeus, trabalhos infinitamente lentos, catedrais de 300 anos cuja construção interminável acomodava curiosas variações e enriquecimentos sucessivos... Adeus, perfeições da linguagem, meditações literárias e buscas que tornavam as obras ao mesmo tempo comparáveis a objetos preciosos e a instrumentos de precisão!
[...] Eis-nos no instante, voltados aos efeitos de choque e contraste, quase obrigados a querer apenas o que ilumina uma excitação de acaso. Buscamos e apreciamos apenas o esboço, os rascunhos. A própria noção de acabamento está quase apagada".

MONTAIGNE Valéry retoma uma tradição. Lemos em Montaigne (1533-92) que "a alma que não tem um fim estabelecido perde-se. Porque, como se diz, estar em toda parte é não estar em lugar algum". Aqui, entendemos por alma o "trabalho teórico do espírito", potência de transformação. O que leva a alma (espírito) a se perder é o trabalho desordenado.
Habitar o próprio eu, comenta Bernard Sève, é o projeto de Montaigne: viver em repouso, longe das agitações do mundo, retirar-se da pressa do mundo "para se conquistar, passar do negotium ao otium", do negócio ao ócio.
É isso que podemos ler na inscrição que Montaigne mandou pintar nas paredes da sua torre: "No ano de Cristo de 1571, aos 38 anos, vésperas das calendas de março, dia de aniversário de seu nascimento, depois de exercer longamente serviços na Corte (Parlamento de Bordeaux) e nos negócios públicos [...] Michel de Montaigne consagrou este domicílio, este tranquilo lugar vindo de seus ancestrais, à sua própria liberdade, à sua tranquilidade, ao seu 'loisir' (otium)".
Eis que Montaigne recolhe-se ao ócio reflexivo, com um espírito criativo leve e vagabundo. Como escreve Sève, um Montaigne distante das pressões políticas e das injunções do trabalho burocrático, com o espírito já amadurecido, "construído pela vida, espírito prestes ao fecundo exercício de uma ociosidade inteligente e feliz". Mas interpretemos com cuidado esse afastamento do mundo.
Se a vida teórica aparece mais compensadora, é porque Montaigne não encontrou na vida prática -social e política-, no Parlamento de Bordeaux, aquilo que buscava. À diferença dos comuns, Montaigne não procurava satisfação no reconhecimento social e político. No ócio, preferiu a busca da verdade às coisas da política.
Sua "contemplação" teórica é discursiva, isto é, transforma-se em atos de pensamento e, portanto, em atividade prática. Nascem aí os monumentais "Ensaios".

FOUCAULT A aliança entre capital, igreja e disciplina militar para regular o trabalho tem história. Em um curso de 1973, ainda não publicado, Michel Foucault (1926-84) narra a institucionalização do trabalho através da "fábrica-caserna-convento" no final do século 19. Ele descreve as regras de uma comunidade fechada de até 400 trabalhadores: acordar às 5h, 50 minutos para toalete e café, trabalho nas oficinas das 6h10 às 20h15, com uma hora para as refeições. À noite, jantar, reza e cama às 21h. Só no sul da França, 40 mil operárias trabalhavam nessas condições.
O trabalhador é fixado no aparelho produtivo, no qual "o tempo da vida está submetido ao tempo da produção". Vemos nessa experiência uma mudança essencial que nos interessa porque se torna mais aguda e determinante no trabalho hoje: "da fixação local a um sequestro temporal". Ou melhor, da ideia de controle do espaço no trabalho à ideia de controle do tempo.
O trabalho sequestrou o tempo. Se, no século 19, o controle do tempo era apresentado ao operário como um "aprendizado de qualidades morais" que, na realidade, significava a integração da vida operária ao processo de produção, hoje o controle é aceito com naturalidade, e até mesmo desejado.
O homem se integra voluntariamente "a um tempo que não é mais o da existência, de seus prazeres, de seus desejos e de seu corpo, mas a um tempo que é o da continuidade da produção, do lucro".
A reivindicação de tempo livre tornou-se quase que palavra de ordem subversiva: "Preciso tanto de nada fazer que não me resta tempo para trabalhar", conclama Pierre Reverdy, citado no prefácio ao livro de Denis Grozdanovitch "A Difícil Arte de Quase Nada Fazer".

TRABALHO CEGO A mobilização veloz e incessante do trabalho cego não permite ao homem dizer qual é o seu destino e muito menos o que acontece. Ele não dispõe de tempo para pensar e muito menos tem consciência de que seus gestos, no trabalho, produzem muito mais do que os objetos que fabrica.
Há um excedente invisível, entendendo-se por "excedente" tudo o que não é mensurável, que produz catástrofes através do trabalho "normal e produtivo" e se manifesta na poluição, nos desastres ecológicos, no esquecimento e na desconstrução de si.
Como nos lembra Robert Musil em "O Homem sem Qualidades", foi preciso muita virtude, engenho e trabalho para tornar possíveis as grandes descobertas científicas e técnicas, graças aos sucessos dos "homens de guerra, caçadores e mercadores". Tudo isso fundado na disciplina, no senso de organização e na eficácia do trabalho, o que talvez pudesse ser resumido assim: o trabalho mecânico da produção de mercadorias pretende tomar o mundo de assalto, produzindo agitação social e frenesi econômico e consumista, dada a multiplicação de objetos "não naturais e não necessários".
Já o preguiçoso põe-se na escuta de si e do mundo que o cerca.

PENSAMENTO Talvez o mais danoso de todo esse legado para o espírito humano seja a criação de um mundo vazio de pensamento que o ocioso procura preencher. Guardo uma imagem que o poeta e filósofo Michel Deguy me fez ver à janela de seu apartamento, em Paris: um mendigo que dormia 20 horas por dia na escadaria da igreja Saint-Jacques.
Deguy narra essa experiência em um pequeno ensaio com o título "Do Paradoxo": em imagem semelhante, diz ele, também nas escadarias de uma igreja, "a 'Derelitta' de Botticelli está pelo menos sentada, parecendo meditar. Hoje, ninguém medita, como dizia Valéry na figura de M. Teste. Portanto, o mendigo talvez não esteja errado, uma vez que o fato de estar deitado nada muda [...] E quando lembro que Pascal era o pároco da igreja e cuidava dos abandonados, a comparação me perturba: os 'pobres' não são mais como eram -mas os pensadores também não. Portanto, o 'despertar do pensamento'? Nós, você e eu, não queremos dormir. Mas estamos acordados?"
O trabalho técnico, mecânico e acelerado abole o tempo do pensamento, que exige virtudes atribuídas ao preguiçoso: paciência, lentidão, devaneio, acaso -o imprevisto. Em um texto célebre, Valéry nota: "O futuro não é mais como era". Isto é, não há mais o tempo lento do pensamento, momento em que o tempo não contava. Sabemos que é na vida meditativa e lenta que o homem toma consciência da sua condição.

SERES OCULTOS Ora, como escreveu ainda Valéry, o amanhã é uma potência oculta, e o homem age muitas vezes sem o objeto visível de sua ação, como se outro mundo estivesse presente, "como se ele obedecesse a ações de coisas invisíveis ou de seres ocultos".
Essa poderia ser uma boa definição do ocioso. Coisas invisíveis e seres ocultos participando do mundo do devaneio e do pensamento. Mundo do trabalho do espírito, em contraposição ao trabalho mecânico.
As ideias e os valores, lembra-nos Maurice Merleau-Ponty (1908-61), não faltam a quem soube, na sua vida meditativa, liberar a fonte espontânea, não deliberadamente, em direção a fins predeterminados por cálculos técnicos e produtivos. Todo trabalho finito e alienado é pura perda.
Através de uma admirável reversão, o meditativo transforma a desrazão do mundo do trabalho alienado em fonte de razão. Isso porque o trabalho meditativo do ocioso é um trabalho sem finalidade, sem "telos", um trabalho sem fim. O trabalho meditante do ocioso exige muito mais trabalho do que o trabalho mecânico. O trabalho da obra de arte e da obra de pensamento pede um tempo que não pode ser medido pelo relógio.

PREGUIÇOSO Como se pode, então, pensar essa figura que sempre teve péssima reputação? Talvez uma boa definição seja a de um autor inglês, Jerome K. Jerome (1859-1927), em seu livro "Pensamentos Preguiçosos de um Preguiçoso" (1886): "O que melhor caracteriza um verdadeiro preguiçoso é o fato de ele estar sempre intensamente ocupado. De início, é impossível apreciar a preguiça se não há uma massa de trabalho diante de si. Não é nada interessante nada fazer quando não se tem nada a fazer! [...] Perder seu tempo é uma verdadeira ocupação, e uma das mais fatigantes. A preguiça, como um beijo, para ser agradável, deve ser roubada".
Jerome K. Jerome leva-nos a pensar que a preguiça não é coisa passiva. Perder o tempo mecânico dá trabalho e exige enorme atividade do espírito.
O egípcio Albert Cossery é apresentado pela revista francesa "Magazine Littéraire" como o escritor contemporâneo que celebra a preguiça como uma arma de subversão política e como um modo de resistir à impostura das potências. Para Cossery, o exercício da preguiça tem o valor da arte de viver. Mas ele distingue dois tipos de preguiçosos: os idiotas e os reflexivos.
"Um idiota preguiçoso permanece idiota!", escreve. "E um preguiçoso inteligente é quem reflete sobre o mundo no qual vive. Mais você é ocioso, mais tempo você tem tempo para refletir... Esses são os valores da preguiça, que supõe, pois, dupla recusa: nosso mundo imediato e a triste realidade."
Mas o mais radical dos libelos contra o trabalho alienado continua a ser o pequeno ensaio de Paul Lafargue (1842-1911), "O Direito à Preguiça" (1880). "Trabalhem, trabalhem, proletários, para aumentar a fortuna social e suas misérias individuais; trabalhem, trabalhem, para que, tornados mais pobres, tenham mais razões ainda para trabalhar e tornarem-se miseráveis. Essa é a lei inexorável da produção capitalista".
Para Lafargue, o trabalho é invenção relativamente recente, uma vez que os antigos gregos desprezavam o trabalho e deliciavam-se com os "exercícios corporais" e os "jogos de inteligência". Ele critica a moral cristã ao proclamar o "ganharás o pão com o suor do rosto" e ao lembrar que Jeová, "depois de seis dias de trabalho, repousou por toda a eternidade".
Robert Louis Stevenson (1850-94), na "Apologia dos Ociosos" (1877), mostra que o ócio "não consiste em nada fazer, mas em fazer muitas coisas que escapem aos dogmas da classe dominante".

MELANCOLIA A tradição relaciona a melancolia e o devaneio à preguiça. Nisso, mais uma vez, igreja e capital estão juntos. O trabalho é o grande meio que a igreja encontrou para lutar contra a melancolia e a vertigem do tempo livre. Seu lema sempre foi "Rezai e trabalhai", ou seja, só abandonar a oração quando as mãos estiverem ocupadas.
Lemos em um ensaio de Jean Starobinski sobre a melancolia -"A Erupção do Diabo-" que o trabalho tem por efeito ocupar inteiramente o tempo que não pode ser dado à oração e aos atos de devoção: "Sua função", escreve ele, "consiste em fechar as brechas por onde o demônio poderia entrar, por onde também o pensamento preguiçoso poderia escapar". Assim, o trabalho interrompe o "vertiginoso diálogo da consciência com seu próprio vazio".
A crítica que Jean-Jacques Rousseau (1712-78) faz ao trabalho não é diferente. Na sétima caminhada dos "Devaneios de um Caminhante Solitário" (1782), ele busca a solidão, mas procura trabalhar tudo o que o cerca, escolhendo o mais agradável. Não escolhe os minerais porque, escondidos no fundo da terra "para não tentar a cupidez", exigem indústria, trabalho, pena e exploração dos miseráveis nas minas.
As plantas não. A botânica é o estudo de um "ocioso e preguiçoso solitário": "Ele passeia, erra livremente de um objeto a outro, passa em revista cada flor... Há, nesta ociosa ocupação, um charme que só se sente na plena calma das paixões, o que basta para tornar a vida feliz e tranquila. Mas, quando se mistura aí um motivo de interesse ou vaidade, seja para ocupar espaços, seja para escrever livros, ou quando se quer aprender apenas para se instruir ou pesquisar as plantas apenas para se tornar professor, todo o charme da tranquilidade se desfaz; [...] no lugar de observar os vegetais na natureza, ocupa-se apenas com sistemas e métodos".
O que importa hoje, talvez, é propor a luta do progresso contra o progresso; isto é, a valorização do progresso do espírito, a valorização dos valores contra o progresso técnico, esta "ilusão que nos cega". Eleger a quietude, o silêncio e a paciência para conhecer e aprofundar indefinidamente as coisas dadas.
Eis o ócio que Karl Kraus (1874-1936) nos propõe: "Se o lugar aonde quero chegar só puder ser alcançado subindo uma escada, eu me recusarei a fazê-lo. Porque lá aonde eu quero realmente ir, na realidade já devo estar nele. Aquilo que devo alcançar servindo-me de uma escada não me interessa".

"O que importa hoje, talvez, é propor a luta do progresso contra o progresso; isto é, a valorização do progresso do espírito, a valorização dos valores"
"Além de praticar crime contra a sociedade do trabalho, o preguiçoso comete pecado capital. Pela lógica do mundo do trabalho e da igreja, deve sentir-se culpado"
"O trabalho meditativo do ocioso é sem finalidade, sem "telos", um trabalho sem fim; exige muito mais trabalho do que o trabalho mecânico"
"O trabalhador é fixado no aparelho produtivo, no qual "o tempo da vida está submetido ao tempo da produção". O trabalho sequestrou o tempo"