sábado, 13 de novembro de 2010

Ildásio Tavares, um mestre



O poeta Ildásio Tavares faleceu no dia 31 de outubro. Soube de seu funeral, quando já tinha acontecido, no dia seguinte. Rascunhei esse texto para lembrar de meu contato com ele.
Conheci Ildásio Tavares durante o curso de Letras na UFBA. Antes mesmo de ser seu aluno em Literatura Portuguesa II, já nos cruzávamos pelos corredores, mas sem nos cumprimentarmos. Passava sempre sério e demonstrava certa sisudez.
Quando tínhamos aulas de outras disciplinas na sala de pesquisa do setor de Literatura Portuguesa, eu pegava, por curiosidade, alguns livros de sua autoria para ler, colocados numa estante de aço, encostada a uma parede desenhada por um opachorô de Oxalá à lápis de cera. Só soube que aquele desenho era dele pelas faxineiras do Instituto de Letras, que foram obrigadas a não limpar a parede porque o professor Ildásio não permitia.
Quando fui seu aluno, tive umas das maiores descobertas literárias, uma experiência de leitura que até hoje não perdeu o viço daquele instante. Fernando Pessoa e Florbela Espanca me foram revelados pela didática nada convencional de Ildásio Tavares, entre anárquica e contemplativa.
Lembro-me que o prazo para entrega do trabalho sobre o autor português de nossa escolha tinha acabado, mas que pelo meu interesse e participação na disciplina, foram dados mais três dias de tolerância. A data coincidia com a posse de um novo membro na Academia de Letras da Bahia e ele disse que eu levasse lá. Como não tinha ainda habilidade com o computador, que horas antes apagou o documento, fiz o trabalho à mão, que resultou em vinte páginas.
A partir deste envolvimento acadêmico, Ildásio me convidou duas vezes para visitar sua casa na Pedra do Sal, em Itapuã, rua Vinicius de Moraes. Na primeira vez, foi um almoço com outros colegas. Na ocasião, muito receptivo, fez um peixe assado, um verdadeiro manjar. Na segunda vez, foi para me presentear com livros seus.
Sua generosidade comigo foi maior, quando sofri um assalto violento em Lisboa em 1996, em viagem de turismo. Fiquei hospitalizado por um mês e meio, com os braços fraturados e escoriações diversas. Prontamente ao saber do caso pelos jornais, enviou um fax a um amigo seu, pedido ajuda para me atender. Eis as suas palavras:
Caro Aéssio: Marielson Carvalho Bispo da Silva, aluno meu do Instituto de Letras, escritor, pessoa de alto nível moral e intelectual, foi barbaramente espancado por um assaltante em Lisboa, tendo inclusive dois braços fraturados, traumatismo craneano, 4 dias em coma, e seu estado causa preocupação na primeira página dos jornais e começa a se transformar num incidente internacional. Mas, afora isso, o que eu gostaria mesmo é que você , que tem sido um amigo meu solidário, fosse visitá-lo no hospital e me desse alguma notícia. É só visitá-lo mesmo. Ele está coberto por seguro de saúde. Ele está no Hospital São Lázaro, tel: 887-3131, serviço 9, sala 1, cama 3. Te agradeço muito. Desculpe, tenho muitos amigos em Lisboa mas nessa hora só pensei em ti, tchê. Abracíssimo.
Meses depois deste episódio, estava passando uma tarde em Itapuã, decidi estender a caminhada pela praia até à sua casa. Como sempre, ele foi muito receptivo. Em seu gabinete, me fez uma revelação. Ao consultar os búzios, disse que Omolu era meu orixá. Recomendou-me um trabalho de limpeza espiritual com pipoca para expurgar energias negativas. Mas como naquele instante eu me considerava cético em relação a isso, não segui suas orientações. Anos depois, sentindo esta necessidade, passei a ir na festa de São Lázaro em janeiro para minha lavagem anual.
Agora, relendo o original do fax, entregue a mim no dia daquela visita, me atentei para um detalhe. O hospital onde fui primeiramente internado foi São Lázaro, que no paralelismo sincrético com o candomblé é Omolu. Dia 17 de dezembro é o dia consagrado ao santo. Dia de meu nascimento.
O mestre Ildásio Tavares, Oba de Xangô do Ilê Axé Opô Afonjá, sabia das coisas.
Atotô!