quinta-feira, 2 de dezembro de 2010

Acontece que eu sou baiano - o livro


A repercussão de meu primeiro livro tem sido surpreendente, talvez menos pelo autor, mais pelo que ele escreveu, assim como pelo tema que analisa, a saber, a baianidade de Dorival Caymmi.

Falo isso sem nenhuma ponta de falsa modéstia, até porque, confesso, devo muito a boa aceitação do livro ao próprio Dorival Caymmi, que por si só já é uma figura importante na cultura e na música brasileira.

Meu contato com ele inicialmente foi por telefone, que se estendeu por sete anos, até chegar o dia de conhecê-lo pessoalmente no Teatro Castro Alves, em 2006, na entrega do Prêmio Jorge Amado de Cultura e Arte. Doce, atencioso e falante, Caymmi recebeu de bom grado a proposta de meu trabalho sobre sua obra. Às vezes, vi-me obrigado a ter o distanciamento devido de pesquisador e evitar uma proximidade de admirador, mas no dia do evento não me contive de emoção ao apertar sua mão que tanto escreveu canções representativas de nosso cancioneiro nacional. Após sua morte, já com a dissertação de mestrado defendida e recomendada para publicação pela banca, mas guardada no fundo da gaveta, fui motivado por amigos e pela necessidade de prestar-lhe uma homenagem. Consegui apoio da Fapesb para 300 exemplares. Edição esgotada. A editora fez mais cem exemplares para atender ao edital da Fundação Pedro Calmon, que selecionou meu livro para ser distribuído nas bibliotecas públicas do Estado. No dia do lançamento em Salvador, na Galeria do Livro, dos cem exemplares disponíveis, vendi 67. Foi uma noite de sexta-feira de happy hour literário festivo ao som de violino, violão e percussão tocando Caymmi, regada com bebidinhas, doces e salgados variados e acarajé feito na hora, além da alegria de amigos, colegas e parentes... Agradeço à imprensa que apoiou na divulgação do livro em diferentes meios. Meus agradecimentos especiais:

À Patrícia Moreira, do Caderno 2+, de A Tarde, que conheci na Bienal do Livro de São Paulo, onde lancei a convite da Associação Brasileira das Editoras Universitárias. A jornalista acreditou na proposta de meu livro e abriu espaço com uma entrevista de página inteira na edição do caderno no dia do lançamento.

À Tv Aratu, pelo repórter Cristiano Gobbi, que fez uma matéria muito criativa e coerente com a proposta do livro, retratando a partir do local onde foi dada a entrevista, no Rio Vermelho, personagens emblemáticos do cancioneiro caymmiano como o pescador e a baiana de acarajé.

Às rádios Excelsior (Salvador) e Unesp FM (São Paulo) pela minha participação em dois programas para públicos diferentes e que, na primeira emissora, me deu a experiência de falar ao vivo com ouvintes que me conheciam, como Júlia, bilbiotecária da UFBA, funcionária homenageada pela minha turma na formatura de Letras. Na rádio paulista, gravado por telefone, falei para um público mais literário. Confira aqui a entrevista. É a de nº 932 no playlist.

À TVE, que divulgou o livro antes do lançamento, no TVE Revista como dica da agenda cultural; durante o evento, com exibição no mesmo programa; e depois, no Soterópolis, numa matéria bem produzida pela equipe de um dos programas mais criativos da televisão local. Além disso, tive o apoio de blogs de amigos e de desconhecidos, notas em jornais locais e sites informativos.

Agradeço imensamente a Andréia Fiamenghi, da Galeria do Livro, no Espaço Unibanco, pela recepção ao livro e a extravagância do autor em fazer um evento lítero-musical em uma extensão recém-inaugurada de sua livraria. Enfim, agradeço a todos os caymmianos veteranos e novatos, sem os quais o livro não teria tido a trajetória que tem construído. Agora, é partir para a 2ª edição, porque a fila de pedidos está crescendo.

sábado, 13 de novembro de 2010

Ildásio Tavares, um mestre



O poeta Ildásio Tavares faleceu no dia 31 de outubro. Soube de seu funeral, quando já tinha acontecido, no dia seguinte. Rascunhei esse texto para lembrar de meu contato com ele.
Conheci Ildásio Tavares durante o curso de Letras na UFBA. Antes mesmo de ser seu aluno em Literatura Portuguesa II, já nos cruzávamos pelos corredores, mas sem nos cumprimentarmos. Passava sempre sério e demonstrava certa sisudez.
Quando tínhamos aulas de outras disciplinas na sala de pesquisa do setor de Literatura Portuguesa, eu pegava, por curiosidade, alguns livros de sua autoria para ler, colocados numa estante de aço, encostada a uma parede desenhada por um opachorô de Oxalá à lápis de cera. Só soube que aquele desenho era dele pelas faxineiras do Instituto de Letras, que foram obrigadas a não limpar a parede porque o professor Ildásio não permitia.
Quando fui seu aluno, tive umas das maiores descobertas literárias, uma experiência de leitura que até hoje não perdeu o viço daquele instante. Fernando Pessoa e Florbela Espanca me foram revelados pela didática nada convencional de Ildásio Tavares, entre anárquica e contemplativa.
Lembro-me que o prazo para entrega do trabalho sobre o autor português de nossa escolha tinha acabado, mas que pelo meu interesse e participação na disciplina, foram dados mais três dias de tolerância. A data coincidia com a posse de um novo membro na Academia de Letras da Bahia e ele disse que eu levasse lá. Como não tinha ainda habilidade com o computador, que horas antes apagou o documento, fiz o trabalho à mão, que resultou em vinte páginas.
A partir deste envolvimento acadêmico, Ildásio me convidou duas vezes para visitar sua casa na Pedra do Sal, em Itapuã, rua Vinicius de Moraes. Na primeira vez, foi um almoço com outros colegas. Na ocasião, muito receptivo, fez um peixe assado, um verdadeiro manjar. Na segunda vez, foi para me presentear com livros seus.
Sua generosidade comigo foi maior, quando sofri um assalto violento em Lisboa em 1996, em viagem de turismo. Fiquei hospitalizado por um mês e meio, com os braços fraturados e escoriações diversas. Prontamente ao saber do caso pelos jornais, enviou um fax a um amigo seu, pedido ajuda para me atender. Eis as suas palavras:
Caro Aéssio: Marielson Carvalho Bispo da Silva, aluno meu do Instituto de Letras, escritor, pessoa de alto nível moral e intelectual, foi barbaramente espancado por um assaltante em Lisboa, tendo inclusive dois braços fraturados, traumatismo craneano, 4 dias em coma, e seu estado causa preocupação na primeira página dos jornais e começa a se transformar num incidente internacional. Mas, afora isso, o que eu gostaria mesmo é que você , que tem sido um amigo meu solidário, fosse visitá-lo no hospital e me desse alguma notícia. É só visitá-lo mesmo. Ele está coberto por seguro de saúde. Ele está no Hospital São Lázaro, tel: 887-3131, serviço 9, sala 1, cama 3. Te agradeço muito. Desculpe, tenho muitos amigos em Lisboa mas nessa hora só pensei em ti, tchê. Abracíssimo.
Meses depois deste episódio, estava passando uma tarde em Itapuã, decidi estender a caminhada pela praia até à sua casa. Como sempre, ele foi muito receptivo. Em seu gabinete, me fez uma revelação. Ao consultar os búzios, disse que Omolu era meu orixá. Recomendou-me um trabalho de limpeza espiritual com pipoca para expurgar energias negativas. Mas como naquele instante eu me considerava cético em relação a isso, não segui suas orientações. Anos depois, sentindo esta necessidade, passei a ir na festa de São Lázaro em janeiro para minha lavagem anual.
Agora, relendo o original do fax, entregue a mim no dia daquela visita, me atentei para um detalhe. O hospital onde fui primeiramente internado foi São Lázaro, que no paralelismo sincrético com o candomblé é Omolu. Dia 17 de dezembro é o dia consagrado ao santo. Dia de meu nascimento.
O mestre Ildásio Tavares, Oba de Xangô do Ilê Axé Opô Afonjá, sabia das coisas.
Atotô!

segunda-feira, 23 de agosto de 2010

Bienal do Livro 2010

Reitor da Uneb, Lourisvaldo Valentim

Diretora da EDUNEB, Nadija Nunes

Apresentação dos livros pelos autores
Desembarquei em São Paulo em plena sexta-feira, 13 de agosto, para o lançamento de meu livro "Acontece que eu sou baiano: identidade e memória cultural no cancioneiro de Dorival Caymmi" na Bienal do Livro 2010, no stand da ABEU (Associação Brasileira de Editoras Universitárias). A convite da EDUNEB, leia-se Nadja Nunes, diretora do selo, e na companhia de outros professores da UNEB, falamos para um público de editores e pesquisadores sobre nossos livros.

Dos 15 exemplares de "Acontece que eu sou baiano" enviados para a Bienal, 11 foram vendidos no primeiro dia e antes mesmo do lançamento. Detalhe: eu não autografei nenhum, mas fiquei feliz pelo fato de terem adquirido quase todos. Espero que com o término da feira hoje, eu tenha fechado com zero no estoque.

Aliás, a edição está praticamente esgotada, frente ao número de 300 exemplares que a FAPESB, financiadora do projeto, aprovou. 100 livros foram doados às bibliotecas da UNEB, mais 100 ficam com a editora e a outra centena é do autor.

Os exemplares da editora serão vendidos à Fundação Pedro Calmon, que selecionou o título para o projeto Mais Cultura, que distribui livros de autores baianos nas bibliotecas públicas.

Dessa forma, só resta a minha cota para o lançamento em Salvador, o que é pouco, pois metade desses 100 exemplares é para divulgação e distribuição gratuita a pessoas e instituições que colaboraram para a conclusão da obra. Assim, penso eu, a editora fará uma nova edição revisada para os lançamentos futuros. Isso para um autor estreante é uma vitória, mais ainda em se tratando de um ensaio. Tenho certeza que o tema ajuda muito no interesse das pessoas, pois quando se fala em Caymmi, as pessoas sorriem, porque de fato a música caymmiana é alegre e festiva, e sua própria imagem é um convite à felicidade.

Aliás, desde quando comecei a pesquisar sua obra, a felicidade também tem me visitado. Muito do que tenho alcançado na vida pessoal e profissional nos últimos 10 anos deve-se ao compromisso e à seriedade com assino minhas pesquisas sobre Caymmi.

Sobre Caymmi, só ressalto o que é próprio de si mesmo, ou seja, quando analiso suas canções, traço o que ele mesmo apreendeu de sua experiência como baiano, nascido e criado em uma Bahia particular e afetiva, não aquela imposta ou inventada por outros.

É sua memória o que me interessa e isso já é uma tarefa difícil de interpretar, porque somente ele a conheceu bem, e o pouco que ele nos revela, está em suas canções. Basta ouvi-las. E deixem que elas mesmas falem por si.

domingo, 14 de março de 2010

O Colegial - conto




Penso em você. O que? E continuou a andar. Não acreditou no que ouviu, mas também não quis explicação. A pergunta foi para se esquivar. Sim, penso em você. Não o conheço, como pode pensar em mim? E precisa te conhecer pra ser admirado? Sempre quando vou à padaria, no final da tarde, ele passa por mim. Umas vezes, me olha fixamente. Outras, desvia o olhar, mas continua olhando pelo canto do olho. É impressão minha ou quando estamos em lados opostos da rua ele atravessa para o meu lado? Ei, cara, vou ter que adiantar, não vou ficar pro jogo. Todo dia é isso. Amanhã eu fico. Amanhã, amanhã... vou botar outro no seu lugar. É que tenho que estudar, velho, perdi em três matérias. Suas pernas longas, grossas, de poucos pêlos, estão sempre à mostra por conta dos shorts azul, preto, ontem estava com o que mais gosto, branco com aberturas laterais, bem curto. O peitoral é de quem está malhando, os braços também. Os ombros bem alinhados. O pescoço, rijo. Suas feições são já de adulto, mas o olhar é de menino, curioso e traquina. Pelugens cheias de falhas estão nascendo nas laterais do rosto, no queixo, mas quem disse que ele pensa em tirar? Nem eu quero, essa hombridade juvenil me encanta, nele especialmente. E a voz é forte. Ouvi agora, quando falou “como pode pensar em mim?” Como pode? No banheiro, depois de chegar em casa, ele repetiu aquela frase enquanto se ensaboava, mão nas axilas, no peito, na virilha... Nunca o vi com o uniforme, mas deve estudar no Salesiano, já que por duas vezes acompanhava outros rapazes deste colégio. Ele é o meu colegial. De escola pública ou particular, pouco importa. Está interessado em aprender muitas coisas e eu em ensinar. E aprender também. Não parece ser tão ingênuo assim. Se tiver 18 anos, para mim, que tenho 30, não chega a ser desproporcional. Sim, ele tem 18. Perguntei numa segunda tentativa de puxar uma conversa. Desta vez, parou um pouco e com certa irritação pediu que não mais falasse com ele. Tenho namorada e não curto essa, falou? Nesse dia, jogou uma partida com o colega que insistia há vários dias. Estava suado, seu cabelo molhado, sua blusa colada à barriga, seu cheiro viril. Até que enfim, hein, acho que tem outra coisa aí? Aí, o quê? Ah, essa de você não querer mais jogar com a gente e fugir sempre neste horário... Ô, não é você que diz sempre “amanhã, amanhã”? Tá desconfiado de quê? Nada, cara, só falei que... Já disse, tô estudando muito. Antes era você quem insistia, até esquecia que tinha algum trabalho de aula para fazer. Pois é, agora, tomei responsabilidade, minha mãe disse que do jeito que estava não dava mais para aceitar. Fique um pouco, vamos tomar um caldo de cana na barraca. Tenho que ir, cara, já está anoitecendo. Já vai estudar? Não, vou descansar. Acelerou o passo e ainda conseguiu me ver dobrando a esquina com o saco de pão quentinho. Adiantou-se, passou por mim e seguiu sem olhar para trás. Tentei acompanhá-lo e quando estava bem perto disse: Ei, espere. Virou-se repentinamente e estendeu o braço para me empurrar, teria sido isso mesmo ou um gesto involutário, de insegurança e desejo juntos? Defendi-me com o saco, que caiu no chão, espalhando alguns pães. Desculpe, cara, não foi minha intenção. Agachou-se e recolheu os pães. Não, estes não servem mais. Fechou o saco e me deu. Desculpe. E saiu. Envergonhado. Eu sorri, perdoei. Em casa, tomou vitamina de banana e comeu pão com queijo. Lembrou do cara do pão quentinho que dá em cima dele todo dia no final da tarde. O colega de futebol liga. Festa amanhã. Vou. Às 9, passo aí. Falou. Arrumado, espera no playground do edíficio. Que festa é essa? De uns caras que eu conheço, gente do bem. Que tipo? Dá de tudo lá. Drogas? Também. Tô fora. Meninas, meninos, adultos, coroas... Pararam antes num posto de gasolina, beberam energéticos. Veio o papo. Danilo. Danilo é o nome dele. O que é? Antes de chegar lá quero te falar uma coisa. Sim. Velho, fique na sua, calado, não fale pra ninguém. Qual é o segredo? É que tô curtindo um cara bacana, de 28 anos, gay, figura nota 10. O quê? Repita aí. É isso mesmo. Você é viado? Não é isso. Sou bi-transitivo, tipo verbo com dois complementos. Roger, isso é grave. O mundo não vai acabar não, Danilo. Não acredito. E tem mais: sempre achei você interessante, mas... Mas, o quê? Mas sei que não é sua curtição. Ainda bem que pensa assim. É isso. E é pra lá que nós vamos? Pra casa de seu namoradinho? É. Por que não disse antes? Você não corre perigo, ninguém vai te aborrecer, estarei por perto. Quero ver. A surpresa. Eu estava lá. Amicíssimo do aniversariante, quase irmão de sangue, era presença mais do que especial. E Roger chega com Danilo. Seus olhos se abriram e assim ficaram congelados e assim mostraram que eu não era real. Inimaginável. Eu, que estava bebendo um gole de champanha, engasguei. Danilo sacou na hora. Não houve disfarces. Impactante mesmo, ainda mais que fui eu quem os recebi. Na sala de visitas, tinha poucas pessoas, a maioria estava no jardim e ao redor da piscina. Se conhecem? Não!, disse ele rápido. Sim, respondi apertando sua mão, mas não sei seu nome. Trêmula a mão, gelada também. Roger me olhou com sorriso irônico. Danilo. Guido. Neste instante, aparece o anfitrião. Paulo. Demorou, Roger. Trouxe aquele colega que te disse. Oi, Danilo. Cumprimento frio. O que foi que aconteceu com ele? Pergunte a Guido. Não tenho nada a dizer. Será? Roger, vou embora. Não, cara, relaxe. Dei um lenço de papel para ele. Suava nervoso. Não enxugou, amassou na mão. Sente aí, rapaz, tome um refrigerante, aqui menor não bebe álcool. Tenho 18 anos. Liberado então. Roger, cuide dele, Guido, venha cá. Contei tudo a Paulo. Ele é lindo, amigo, mas pelo que Roger me disse ele não curte. Respeito sua posição, mas não resisto em investir toda vez que o vejo. Esse é o momento de vocês conversarem. Roger pode ajudar. Esse cara me segue todo dia quando saio do colégio, Roger. Mas ele é do bem, discreto, inteligente e educado, mora ali, no Jardim Baiano, é professor universitário. Sim, isso tudo não me diz nada. Tudo bem, mas é uma referência boa dele e está sozinho. Você tá me jogando pra ele? Não sei, depende de você. Velho, não sou gay, não! Tem certeza? Tenho. Não achei firmeza nesse “tenho”. Tá me estranhando, é? Sabe de uma coisa, cara, é coisa de amigo o que vou falar. Diz. Acho que você tem vontade e curiosidade de transar com outro homem, e digo mais, por diversas vezes já flagrei você secando Robson do 3° ano vespertino, aquele moreno que faz natação... Qualé, Roger! Ele é interessante, não é? Sei lá! Sabe, sim, se lembra daquela vez quando ele foi para o vestuário tomar banho depois do jogo? Não sei. Você foi o único a acompanhá-lo. E daí? Daí que, demorou um pouco e todo mundo foi embora, só eu na quadra, depois entrei no vestuário sem ninguém perceber e vi você se masturbando na sua cabine, olhando pro cara no chuveiro. O quê? E não foi? Seu sacana! Relaxe, relaxe, ninguém vai saber. Eu me aproximo e pergunto se os dois vão beber algo. Faça companhia aqui a ele, Guido, que vou pegar. Ei, também vou, disse o rapaz. Fica, insisti. Ele se acomodou no canto do sofá. Que é que você quer comigo? Sempre gostei de você, mas nunca tive jeito de me aproximar. Agora não tem jeito, né? E sorriu para mim. Virou os olhos em seguida e começou a mexer nervosamente os pés. Se acalme, Danilo. Não deveria ter vindo. Mas você está aqui e não vai sair enquanto não conversar comigo. Altas horas, quase amanhecendo e nós, sozinhos, deitados nas cadeiras de sol ao lado da piscina. Quase todos os convidados já tinham ido embora, só restando mesmo Roger, Paulo e três outros casais gays. Conversamos sobre nossos sonhos e fantasias, decepções e experiências, desejos e tesões. Ele já tinha parado de beber antes de ficar bêbado, mesmo assim, pareceu mais desinibido, a ponto de me puxar, pela mão, da sala para a cobertura. Ela é macia, mas grande e forte como de um titã. Pensei em não forçar a barra. Agora que eu já lhe disse tudo o que pensava a seu respeito, deixei-o decidir. Posso continuar pensando em você? Sua resposta foi um sorriso mínimo, mas que entendi como expressão mesma de sua timidez. Domingo se passou e a ansiedade de, na segunda, à tarde, naquela hora em que é mais gostoso comprar e comer pão quentinho, eu ver meu colegial passar. Será que ele vai me cumprimentar? Tudo bem, como foi o fim-de-semana? Falei com o atendente da padaria, Vou querer seis francês. Paguei. O próximo. Um sonho. Estaquei com meu coração palpitando a mil. Aquela voz... Olhei para trás. Um não, dois, você quer um Guido? Não respondi, emudeci. Fiquei sem chão. Sem ar. Sem argumentos para dizer não. Pães quentinhos no saco. Saímos da padaria comendo sonhos açucarados com recheio de goiabada. Tudo doce. Tudo um sonho mesmo. Fez o que ontem? Dormi até de tarde, depois fui pra casa de minha namorada, e você? Fiquei lendo, assistindo a alguns documentários na tevê, internet... Limpe o canto da boca, está sujo. E me deu seu guardanapo. Obrigado. Desculpe se naquela noite eu fui grosso com você, entenda, é difícil para eu aceitar isso. Isso o quê? Você. Eu? Sim, você e... eu. Eu não lhe disse, mas eu não ficava até de noite na quadra com os colegas, depois das aulas, porque queria saber quem era você... Sério? Sério, achei muita coragem encarar outro homem e dizer “penso em você”, não teria tanta ousadia... Demorou para que eu decidisse fazer isso. Foi a primeira vez que eu me deparei com isso. Você gostou? Não quis aceitar que gostei, daí minha confusão. O que você acha de mim? Um broder sério, plantado, faz meu tipo. Rimos do avanço que a conversa estava tomando. Chegamos à esquina da minha rua. Aceita um café? Não tomo. Faço então um chocolate. Será que devo aceitar? Vamos terminar de comer esse sonho lá em casa. Não sei, não quero ir para... Para, o quê? Só o chocolate, falou? Não respondi. Numa igreja perto, os sinos anunciavam a hora da Ave Maria. O céu de verão ainda estava claro, raios de sol entravam suavemente pela janela da minha sala. E pelo quarto também. Mas quando deitamos na cama, só a brisa quente é que vinha de fora. Os mesmos sinos horas depois nos acordaram de um sonho quase eterno. E o telefone celular dele também. Tenho de ir pra casa, amanhã em frente à padaria a gente se vê. E eu voltei pra cama. No lado, onde ele dormia minutos antes, ainda estava quente como um pãozinho saído do forno...

sexta-feira, 15 de janeiro de 2010

Pensemos no Haiti: post scriptum

Nos EUA, o pastor evangélico Pat Robertson em uma declaração infeliz e preconceituosa atribui o terremoto a um castigo divino pelo pacto com o diabo feito em 1804 para o país tornar-se independente. "Eles estavam sob o domínio francês. Você sabe, Napoleão 3º, ou o que for. Então eles se juntaram e selaram um pacto com o Diabo. Disseram: 'Vamos servi-lo se você nos tornar livres dos franceses. É uma história verdadeira. Então, o Diabo disse: ok, negócio fechado." Estúpido e inconsequente.

Outra fala desagradável foi a de Gerge Samuel Antoine, cônsul do Haiti no Brasil que, sem saber que estava sendo gravado, confessou a uma repórter do SBT que "a desgraça de lá está sendo uma boa pra gente aqui, fica conhecido. Acho que de, tanto mexer com macumba, não sei o que é aquilo... O africano em si tem maldição. Todo lugar que tem africano lá tá f...".

O presidente Barack Obama por meio de seus assessores disse que o pensamento do pastor extremista não corresponde ao do governo e que dará apoio total ao Haiti. O cônsul, que é católico, reafirmou à repórter a sua opinião e disse ser a pessoa mais indicada ao cargo. Pasmem! Esse diplomata merece perder suas credenciais no Brasil.

A intolerância em uma situação como essa não vai ajudar as vítimas nem ressuscitar os mortos. A fala dos dois bestializados senhores só demonstra que o racismo, especialmente contra o negro e suas africanidades, ainda não foi expurgado das mentes das pessoas e que as força a cometer desatinos perigosos. Será que esse Deus também é racista? Se assim for, é pior do que pintam do Diabo.

quarta-feira, 13 de janeiro de 2010

Pensemos no Haiti




Haiti: desespero, caos e sofrimento


A primeira notícia que li nesta manhã de quarta-feira foi a tragédia no Haiti. Estou consternado.

O terromoto que se alastrou pelo país, completa o caos político, econômico e social em que ele se viu engolfado nos últimos anos. O Haiti povoa meu imaginário como o lugar da resistência anti-escravista e anti-colonial. Aprendi ainda jovem nas aulas de História que foi lá, no século XIX, mais precisamente em 1804, depois de doze anos de revolução, que Toussaint Louverture declarou a independência do Haiti, a primeira nação negra livre das Américas.

A insurreição começou ainda século no XVIII, em 1791, em uma cerimônia de vodu, na localidade de Bwa Kayiman conduzida por Cécile Fatiman, uma manbo, mãe-de-santo, e duzentos fiéis. Neste evento, os espíritos ancestrais convocaram os negros para uma experiência libertária contra opressão escrava jamais vista até então no continente americano e que se transformou em referência para o afrocentrismo e outros movimentos negro-africanos.

Essa relação entre religiosidade e resistência que resultou na vitória dos negros está presente nos valores nacionais haitianos, como no hino nacional, que evoca os ancestrais a ajudar na condução e no fortalecimento da nação.

O culto do vodu foi o que amalgamou todos os escravos na luta pela liberdade, fraternidade e igualdade, valores em voga na época inspirados na Revolução Francesa e que estimularam os colonizados a fazerem valer o que aprendiam com os próprios franceses.

Uma das matérias do Folha Online que li, reproduziu o depoimento do antropólogo brasileiro Omar Ribeiro Thomaz, que tive a oportunidade de conhecer e participar de um curso seu no CEAO sobre Haiti e Moçambique em 2003. Ele está fazendo pesquisa em Porto Príncipe com estudantes universitários da Unicamp. A reação dos haitianos diante da tragédia, segundo o professor, é entoar cânticos religiosos. Independentemente para quais divindades, sejam cristãs ou voduístas, os haitianos continuam pedindo aos espíritos que os unam novamente para salvar o país do caos.

Ainda não se tem dados reais, mas estimativas contabilizam 100 mil mortos, frente à magnitude do terremoto. E o Brasil, que tem assumido com a ONU uma missão de paz no país, tem o desafio agora de mostrar ao mundo a que foi de fato para o Haiti. Malgrado a morte de militares brasileiros em atividade e de Zilda Arns, da Pastoral da Criança, órgão da Confederação Nacional dos Bispos do Brasil, a hora é de pensarmos no Haiti e rezarmos pelo Haiti, como vaticinou a canção de Caetano Veloso e Gilberto Gil.

Pensarmos no Haiti pelo exemplo que nos deram os negros haitianos de resistência contra a escravidão, contra a opressão, contra o colonialismo, contra as ditaduras. Rezarmos pelo Haiti para que esse povo negro renasça cada vez mais resistente. Esta catástrofe só piora a vida dos haitianos, o Haiti terá mais dificuldades de sair do primeiro lugar de país mais pobre das Américas. A ajuda internacional deverá ser contínua até a sua reconstrução terminar, seja ela social ou de infra-estrutura.

Recentemente tenho ouvido muito o cantor haitiano BélO. Adquiri seu cd "Reférence" no dia de seu show no Festival de Músicas Mestiças, evento comentado no último post. Em uma das canções mais belas do álbum, o cantor e compositor, que também é voluntário em projetos sociais da ONU, fala em recuperar o Haiti dos ferimentos depois de muito tempo de espoliação e subdesenvolvimento.

"Ayti leve" é cantada em crioulo haitiano, de difícil tradução, mas a mensagem é compreensível, porque no encarte BélO, em francês, explica que a canção é um chamamento para que todos assumam a responsabilidade de redenção do país. Tomara que esta música se junte ao hino, aos cânticos religiosos de santos e vodus para salvar o país. O Haiti não é aqui, mas está tão perto de nossas desigualdades, de nossas diásporas, de nossas lutas que é difícil não sermos solidários aos nossos irmãos de lá.