terça-feira, 10 de novembro de 2009

"Besouro" não voa, só ensaia


"Besouro", de João Daniel Tikhomiroff, é um filme que atrai seu interesse e trai sua expectativa. Neste último caso, a traição não chega a ser traumática, mas a sensação é de que o filme poderia dar mais saltos do que o próprio protagonista.

Baseado em narrativas orais sobre o capoerista negro Manoel Henrique Pereira, conhecido por Besouro, o primeiro longa-metragem do premiadíssimo diretor publicitário João Daniel segue a linha de produção de filmes, comum no Brasil dos últimos cinco anos, que tem dado certo: menos diálogo, mais ação. E no caso de "Besouro" mais ainda. Primeiro, devido ao elenco ser quase todo de atores amadores ou com pouca experiência de cinema, mesmo com preparação de Fátima Toledo, que tira leite de pedra e dá bons resultados como em "Cidade de Deus", de Fernando Meirelles, outro diretor egresso da Publicidade. Os atores não sustentariam o filme com mais fala e menos movimento de cena. Segundo, por ser uma história de capoeira, não se imaginaria um roteiro sem evoluções de "meia-luas" e "rabos-de-arraia".

A escolha de um mestre-de-capoeira, Ailton Carmo, para representar o "herói negro", foi um tento, por conta de sua elasticidade corporal e compleição física apropriadas para as cenas de ação. A performance gestual de Ailton é ressaltada pela coreografia aérea. O que nele tem de mudez, Irandhir Santos, o Quaderna de "Pedra do Reino" (microssérie da Rede Globo), tem de verbosidade quase histriônica, quando, durante todo o filme, obsessivamente caça Besouro para matar, por estar destruindo a fazenda de seu patrão. Sua participação garante a veia dramática e atuante da fala.

A construção do herói pelo diretor é sincera, sem a grandiloquência dos heróis gregos, mas que coincide com a proteção divina, nesse caso baiano, dos orixás. Ele mesmo é visto como um semi-deus por voar e ser invísivel aos olhos de seus perseguidores. A história tem hiatos de narratividade que compromete um tanto o produto final, mas que se salva em parte por ter sido muito bem acabado com os recursos de efeitos visuais. A trilha sonora integrada por Nação Zumbi, Naná Vasconcelos e Gilberto Gil é mais discursiva do ponto de vista de uma idealização do herói. As letras e os arranjos das músicas são como narrativas vocais do que poderia ter sido a imagem em si do filme.

É neste ponto que está a decepção pela falsa expectativa que o filme nos dá. Ao tempo que encanta nossos olhos e ouvidos, nos frustra porque, mesmo que o roteiro seja criativo na reinvenção das lendas em torno de Besouro, não avança e nem fecha certas cenas que são seminais na dramatização da tomada de consciência do personagem contra a exploração do coronel. Isto fica mais evidente nos personagens "mortais" do que no do "imortal" Besouro.

Pai Alípio (Macalé), Chico Canoa (Leno Sacramento) e Quero Quero (Anderson Santos de Jesus)dão mais veracidade a uma perfomatividade negra combativa do que Besouro, quando reagem sem uso de artifícios à subordinação social vigente no engenho de açúcar.

Sua morte pela faca de ticum, a única forma de quebrar o encanto do corpo fechado, só termina a participação de Besouro no filme. Nem seu filho pequeno, que seria a encarnação do mito do pai, dá continuidade ao ideal de luta em cuja ação Besouro poderia ser mais crível. A solução do diretor foi transformar o menino em futuro vingador da morte do capoeirsta, quando em uma das cenas mais emblemáticas, flagra em slow motion os olhos dele mirando o coronel matador. Vingança por vingança, matar por matar, não resolve o problema da exploração, ela só agudiza a tensão social.

Quem dá a mensagem no final, recuperando assim (ou tentando recuperar) o que o mito de Besouro faz circular nas rodas de capoeira e que no filme ficou comprometido pela falta de ênfase no discurso afirmativo, é o Chico Canoa, que mesmo com as pernas defeituosas, quebradas em uma reação aos capangas da fazenda, ensina o filho de Besouro os primeiros passos da capoeira e, assim, de fato a consagrar a herança simbólica do pai pela ação de uma arma de resistência escrava.

O filme constou da lista dos elegíveis para representar o Brasil na seleção de melhor filme estrageiro no Oscar 2010. O Ministério da Cultura fez bem em não ter escolhido "Besouro", mas meteu os pés pelas mãos ao indicar "Salve Geral", de Sérgio Rezende.

O importante é que o filme tem seguido como um dos favoritos do público, se tomarmos a bilheteria alta em Salvador. Por curiosidade, devido ao apelo publicitário dos efeitos visuais à la "O tigre e o dragão", de Ang Lee, ou mesmo por identificação dos baianos com a capoeira e as referências à cultura da Bahia (as locações são da Chapada Diamantina), "Besouro" vale pela redescoberta do personagem-tema e sua versão fabular. Como herói, precisaria mais um pouco de força para voar mais alto.

terça-feira, 3 de novembro de 2009

O Iraque é aqui!

Gays enforcados no Iraque: homofobia mata

Depois de uma Parada Gay animada no dia 25 outubro, onde e quando todos e todas deram pinta sem o olhar de reprovação dos moralistas de plantão, nem o cacetete da repressão policial, eis que na semana seguinte um crime mancha a bandeira colorida com o sangue da intolerância.

A brutalidade com que foi assassinado Jorge Pedra, jornalista e apresentador de programa na Tv Salvador, é capaz de nos deixar impactados, mas não impassíveis. O Grupo Gay da Bahia bradou e a Prefeitura já autuou três hotéis que na verdade funcionavam como motéis e não registravam os hóspedes.

A lista de homossexuais mortos por homícidio ou latrocínio na Bahia já chega a quase vinte desde o início do ano, muitas vezes sem a prisão dos criminosos e que podem estar à solta, caçando mais um gay para o deleite de sua mente doentia.

Os comentários do público nas ruas e de leitores nas matérias dos jornais locais apontam o jornalista como o culpado pela própria morte. Isso não resolve o caso, mesmo que o assassino seja preso e confesse o crime, porque Jorge não estará vivo para se defender do preconceito e da homofobia. A violência anti-homossexual já é um caso de segurança pública nacional.

Escolher bem seus parceiros sexuais não é garantia de vida. É certo que o garoto de programa já foi para o hotel com a intenção de roubar ou/e matar, mas quantos crimes passionais entre heterossexuais e mesmo entre gays casados de longo relacionamento estampam as páginas policiais?

Por sinal, noticia-se mais casos de mortes entre heteros do que entre homossexuais, pelo fato mesmo de a família e amigos de muitos gays não-assumidos ocultarem a motivação do crime para preservar a honra de todos.

A ousadia de um gay não é a mesma de um hetero. Ela é mais arriscada, porque numa sociedade machista e homofóbica não lhe é dada concessão sem que não haja humilhação e discriminação. Isso antes, durante e depois de ser morto. Tratamento de expurgação sexual e limpeza social.

Neste caso de Jorge Pedra, sendo ele cliente assíduo do hotel onde morreu, a recepção não se preocupou em registrar o nome do homem que o acompanhava. Sendo VIP, merecia segurança e atenção do estabelecimento, mas assim como o michê, o gerente do Democrata só tinha interesse no dinheiro de Jorge. Era certo.

Depois de consumado o crime, os reais que Jorge ganhava para mostrar caras e bocas de gente do high society baiano não valeram os minutos de fama e sucesso, não por acaso nome de seu programa, que ele teve nos Se Liga Bocão e Na Mira da televisão como mais uma "bicha morta". Só a família e poucos amigos compareceram ao enterro. Ricos e famosos sumiram.

Preocupa-me muito a imagem de permissividade sexual em Salvador divulgada entre os gays brasileiros e estrangeiros. Aqui todo mundo gosta do babado e faz sem comedimento. É esta a ideia que se tem dos homossexuais (e heteros) baianos, mas não se atentam para o 1º lugar ocupado pela Bahia em mortes por homofobia. Se há ligação direta entre uma coisa e outra, não é possível afirmar, mas que aqui a caça e o abate de "viado" são recorrentes, não tenho dúvidas.

No Iraque, segundo relatório mais recente do Human Rights, homossexuais são perseguidos e exterminados por extremistas religiosos. Os corpos são jogados no lixo com inscrição de "pervertidos" no peito ou enforcados e expostos em praça pública. Adolf Hitler perseguiu judeus homossexuais, que eram identificados nos campos de concentração com um triângulo rosa na roupa. Estima-se que 50.000 foram presos e 10.000 foram mortos.

Esperar pela prisão do assassino de Jorge Pedra e ouvirmos ele falar que matou porque o jornalista queria que ele fosse passivo, como justificou sua defesa o homicida do irmão do humorista Cláudio Manoel, do Casseta e Planeta, em 2007, é jogar para a vítima mais uma vez a responsabilidade e, assim, fazer crer que a masculinidade é intocável e inatacável. Será que o cara é menos gay se for ativo? Tem gente por aí pensando assim, mas o que o dinheiro não faz, inclusive matar, para que o machão não perca sua hombridade?

O assassino de Jorge Pedra agora é mais caça do que caçador. Seu rastro está sendo seguido. E o bicho será enjaulado. A Polícia tem a obrigação de fazer isso. E nós, heteros, bi, homo, trans, o que faremos para que a intolerância não transforme nossos desejos sexuais em mais uma estatística mortal? Cada um sabe a dor e a delícia de ser o que é, como diz Caetano Veloso, mas ninguém é obrigado a pagar pelo sentimento de culpa do outro.

Não à homofobia. Criminalização já.

segunda-feira, 2 de novembro de 2009

EBEL


O mini-curso que ministrei em Seabra no XIII EBEL (Encontro Baiano de Estudantes de Letras) sobre a obra de Dorival Caymmi foi realizado a contento, embora a duração, de apenas quatro horas, tenha sido insuficiente para a abordagem do tema. É sempre recorrente o interesse em discutir o tema da baianidade, mais especificamente quando se trata de Caymmi, consagrado por suas canções que representam uma “idéia de Bahia” no imaginário cultural.

Minha pesquisa sobre o compositor, que faleceu ano passado, será publicada em livro em dezembro e lançada só depois de Carnaval. Como baiano que sou, sei que janeiro e fevereiro são meses de praticar o ócio criativo, aquele tipo de descanso que é necessário na lida de um professor para planejar um novo semestre de trabalho. E quando essa pausa combina com o período de outra pesquisa sobre música afro-baiana em andamento, o prazer é duplicado, porque assim como o vendedor de cerveja que brinca e ganha dinheiro atrás do trio-elétrico, eu estarei fazendo trabalho de campo nas festas populares.

Para a atividade no EBEL, apresentei uma proposta de reflexão sobre as referências simbólicas e materiais afrodescendentes em nove canções do compositor, divididas em três temáticas: personagens (João Valentão, A Preta do Acarajé e O que é que a baiana tem?), religiosidade (Oração de Mãe Menininha, Canto de Obá e Mãe Stella) e festividade (Afoxé, Festa de Rua e Dois de Fevereiro).

A participação dos estudantes no mini-curso foi interativa, embora prejudicada pela intensa programação do evento, que impossibilitou o rendimento melhor das discussões a partir das canções selecionadas. Fico grato pela participação de todos que, mesmo em pouco tempo, dialogaram bem com o propósito do encontro. Àqueles que desejarem mais informações sobre meus projetos, estudos e leituras na linha de Literatura e Cultura Afro-Brasileira, Literaturas Africanas de Língua Portuguesa, Estudos Pós-Coloniais Africanos, Música Afro-Baiana e Literatura Baiana, além é claro de Dorival Caymmi, estou sempre a postos.

Agradeço a meu amigo Prof. Gildeci Leite pela recepção. Parabenizo-o pelo entusiasmo com que lida com a literatura no Campus XXIII, estimulando intelectualmente seus alunos com debates e pesquisa sobre a produção literária baiana, especialmente sobre Jorge Amado e Ildásio Tavares, que esteve presente com sua palavra afiada e bem-humorada sobre si mesmo e os outros.

Como orientador de pesquisa, dou nota 10 a meu bolsista Cleber Xavier, que foi elogiado pela comunicação "Edson Gomes: reggae e ativismo negro na Bahia", fruto de nossas discussões sobre música afro-baiana. Aos poucos, nasce um pesquisador de literatura e cultura. Resta apenas perder a timidez, mas até eu fui assim quando comecei. Avante!

A alegria dos jovens estudantes de Letras de diversas universidades da Bahia e de outros estados me deu fôlego para continuar sendo mestre e companheiro deles todos. Quando, na graduação, eu fui para eventos organizados por estudantes, via poucos professores meus da UFBA, só quando eram convidados especiais... Gosto de sentir o frescor da curiosidade intelectual deles ao participar das palestras, dos cursos, das oficinas... Isso me orgulha muito de ser um profissional das Letras.