domingo, 21 de junho de 2009

Sabra e Shatila

Cena que dá título ao filme "Valsa com Bashir"


Depois de "Persépolis", longa de animação de Marjani Satrapi sobre a Revolução Islâmica no Irã em 1979, outra obra do mesmo gênero, lançada ano passado, mas só em cartaz recentemente no Brasil, revolve nossa memória histórica sobre o Oriente Médio, para não nos esquecermos de que tudo, mesmo vinte e sete, trinta anos passados, permanece presente nos conflitos entre Israel e Palestina ou entre iranianos alinhados ou contrários ao presidente Ahmadinejad.

O filme de que falo é "Valsa com Bashir", de Ari Folman, ganhador de diversos prêmios importantes mundo afora e indicado para melhor filme em Cannes e ao Oscar de melhor filme estrangeiro. É certo que isto dá credibilidade à animação, mas se não fosse a ousadia tanto temática quanto visual da produção, não teria feito trajetória tão elogiada.

O massacre de Sabra e Shatila, em Beirute, durante a Guerra do Líbano entre palestinos, libaneses e israelenses, em 1982, é o tema central do roteiro, mas ele só vai ser revelado a nossos olhos e aos olhos do narrador-personagem no final do filme. Até esse instante, o que sabemos é que o personagem, o próprio diretor, busca através da memória de seus ex-colegas de guerra, o que ele esqueceu do conflito.

Tudo começa (ou recomeça), quando um deles procura Ari para contar sobre os sucessivos pesadelos que tem todas as noites, com 26 cães raivosos perseguindo-o. Ambos sugerem que isso tem ligação com a guerra, então confirmado pelo colega que diz ter sido o responsável por matar, em uma vila do Líbano, o mesmo número de animais, que impediam um ataque-surpresa da tropa por despertarem seus moradores. Mas Folman não se lembra de muitos detalhes desse episódio tão marcante para o outro e se surpreende com isso. Passa a usar seu próprio ofício de cineasta para fazer um filme-documentário, espécie de auto-ficção, para curar ao mesmo tempo o esquecimento profundo e o trauma que o provocou.

Aos poucos, entrevistando os veteranos e um correspondente de guerra, além de um psicólogo amigo seu, ele costura as memórias dos outros para compor a sua. Esse exercício, pouco a pouco, vai revelando cenas que, embora ele não tenha participado ao lado dos ex-soldados que contam, assim mesmo dão conta das lacunas e hiatos de sua participação na guerra. Ele nem se reconhece na única foto que tirou naquela época.

O trauma deve ter sido forte para fazê-lo apagar essa cena de sua vida. Mas a revelação não tarda a emergir das águas profundas, pois mesmo que ela tenha se desvanecido, ele estava lá quando ao entrar em Sabra e Shatila testemunhou cerca de 3500 refugiados de guerra assassinados por libaneses cristãos radicais (os maronitas) que, com o propósito de ajudar os israelenses a combater os palestinos da OLP concentrados em Beirute, na verdade queriam vingar a morte de seu líder Bashir Gemayel, até então presidente do Líbano. O título do filme refere-se a cena em que um soldado israelense, atormentado com a possibilidade de ser morto por estar encurralado, sai da trincheira com o fuzil na mão atirando para todos os lados, como estivesse dançando uma valsa, tendo como fundo musical a Cantata 156 de Johann Sebastian Bach e fundo de cena o retrato gigante de Bashir num prédio.

Os israelenses, responsáveis pelos refugiados, alegam não ter percebido o plano genocida dos falangistas cristãos a tempo de impedi-los. O jovem Ari, que assim como outros tantos de sua idade, estava na guerra menos por convicção política e mais por obrigação ou diversão, acordou desse breu, sendo despertado pelo grito lancinante das mulheres vendo seus companheiros, filhos e parentes assassinados e insepultos.

Tão longe, tão perto, essas cenas lembraram-me do que aconteceu em Canudos, quando alguns entre as centenas de homens, mulheres e crianças que se renderam antes da queda do arraial foram degolados pelos próprios militares. Um crime de guerra, mas que não houve punição. Aqueles que morreram, resistindo até o fim, não foram enterrados pelo Exército. Durante dias, meses, os corpos serviram de banquete aos urubus. A fedentina era sentida à distância. Euclides da Cunha, em "Os Sertões", resumiu em uma frase, o massacre que foi também Canudos: "Aquilo não era uma campanha, era uma charqueada".

Em Mugonero, região montanhosa de Ruanda, uma chacina entre tantas outras do genocídio praticado pelos hutus contra os tutsis, é descrita por Philip Gourevitch em seu livro "Gostaríamos de informá-lo de que amanhã seremos mortos com nossas famílias". Em templo e hospital adventistas, tutsis foram se proteger do ataque. Sentiam-se protegidos por pensarem que as milícias respeitariam a igreja, mas o pastor-líder dos Adventistas do Sétimo Dia, quando o cerco apertou, facilitou a fuga de alguns hutus e avisou aos tutsis que não podia fazer nada para salvá-los. "Já foi encontrada uma solução para o seu problema. Vocês devem morrer. (...) Deus não quer mais vocês", vaticinou o pastor. Em nome de Deus, 2 mil refugiados foram condenados ao extermínio por serem tutsis.

O filme de Ari Folman reavivou-me de imediato esses episódios, ao tempo que colocou na lista de meus assombros do mundo, o massacre de Sabra e Shatila, que eu não conhecia. Parecendo sair de um pesadelo, para outro pior, porque vem duplicado, daquilo que viveu e esqueceu e daquilo que viveu e se lembrou, o personagem aparece catártico diante do verdadeiro inferno que foi aquela guerra. É sua última aparição antes dos créditos finais, assim como a última cena em animação, com as mulheres se aproximando dele. Corte. Na sequência seguinte, ele usa imagens de uma reportagem feita à época como se fosse sua visão, num recurso conhecido por "câmera subjetiva" (veja aqui).

Fazendo percurso inverso de "Persépolis", "Valsa para Bashir" foi adaptado para graphic novel, gênero narrativo em quadrinhos, espécie de romance ilustrado para adultos. O trabalho de Marjani Satrapi merece um comentário especial em outro post, mas foi citado aqui pela proximidade tanto temática, quanto narrativa, na medida em que, sobre o primeiro motivo, ambos tratam de temas ligados a conflitos étnicos e políticos em uma região e num contexto muito próximos. Já o segundo motivo, diz respeito à escrita autobiográfica de seus autores, como sujeitos testemunhais dos episódios que narram.

sábado, 20 de junho de 2009

Entre Dakar e Maputo, mas para além da África

A África por ela mesma, sem limites e fronteiras coloniais


O Curso Avançado em Estudos Africanos do CEPAIA (Centro de Estudos dos Povos Afro-Índio-Americanos), órgão da UNEB, tem sido um proveitoso momento de formação intelectual e acadêmica para professores de Ciências Humanas, Letras e Artes que lecionam e pesquisam temas relacionados à cultura, história e literatura africanas e afro-brasileiras.

Em três encontros realizados até agora, a participação dos professores envolvidos, cerca de 45 de diversos campi da Universidade, alcançou níveis altíssimos de debate com os palestrantes convidados, como foi com o Prof. Acácio Almeida (PUC-SP), na aula de abertura, sobre "África e Contemporaneidade", em seguida com o professor senegalês Boubacar Barry (Universidade Cheikh Anta Diop, Senegal), sobre "Teorias e Métodos de Pesquisa em História da África", e por último, com o professor moçambicano Severino Ngoenha (Universidade de Lausanne, Suíça), sobre "Pensamento, Filosofia e Antropologia Africanos".

A experiência que tive a partir do contato com os dois professores africanos só confirmou o que, desde o período do mestrado e como bolsista em 2003 do VI Curso Avançado sobre Relações Étnicas, Raciais e Cultura Negra da Fábrica de Idéias, CEAO-UFBA, eu pretendia fazer como pesquisador: regressar à África, não a uma África mítica e distante, embora ela faça parte de minha ancestralidade, mas a uma África das africanidades diaspóricas nas Américas, especialmente no Brasil.

Ao ouvir do Prof. Severino Ngoenha que a emancipação africana começou na diáspora com intelectuais e artistas afrodescendentes, mas sempre tendo a África como consequência dessa luta pela libertação colonial, pensei que, dentro de minhas limitações de leituras e estudos sobre o pensamento africano, não poderia deixar de assumir meu lugar de fala nessa história.

Como pesquisador e sujeito afrodescendente, sinto-me reponsável por dar continuidade e desdobrar o legado que essa geração heróica do Harlem Renaissance, do Pan-Africanismo e de outros movimentos negros nos deixaram.

Os professores Boubacar e Severino, africanos de diferentes formações, regiões e tradições, mas igualmente experientes na reversão, desconstrução e reinscrição de valores outrora assentados sobre a África, nos conclamou para acompanhá-los nessa passagem de bastão às gerações futuras do que produzirmos hoje.

Esse chamado me fez lembrar o que o Prof. Acácio disse enfaticamente: "Não se estuda África sozinho". É certo que temos nossos interesses particulares de pesquisa, mas o diálogo e o convívio com outros pesquisadores interessados em África nos possibilitam estar sempre aprendendo sobre as Áfricas que não conhecemos, sejam as de lá, entre Dakar e Maputo, entre Cabo e Cairo; sejam as de cá, entre Havana e Salvador, entre New Orleans e Porto Príncipe.