terça-feira, 17 de fevereiro de 2009

Cláudia Cunha, voz para entrar na roda

Extasiado. É esta a sensação que tive ao terminar de ouvir a voz de Cláudia Cunha. Quem é? Ouça. Mas como sou língua-solta e dedos-corredios, não perco a vontade de falar e escrever sobre esta moça de Belém que desaguou por aqui em 1996.

Em sua trajetória por águas baianas, ela já ganhou o Troféu Caymmi, o V Festival da Rádio Educadora e o Prêmio Braskem. Com esta premiação, pôde lançar seu primeiro cd "Responde à Roda". O último dia da temporada de lançamento aconteceu em 1° de fevereiro, com sessão extra, no Teatro Gamboa Nova, e repeteco aberto ao público dia 11 no Pelourinho.

A escolha do Gamboa completou a riqueza sonoro-visual do show. Ao cantar a belíssima canção "Mar do Norte" (Ivan Bastos e Gil Vicente Tavares), numa sugestiva remissão à sua origem paraense ("Aquém do norte estou/ Mas não sei mais me achar aqui no sul"), as cortinas do fundo do palco se abriram para a baía ensolarada em tarde de verão. A voz clara e líquida se amalgama com a letra e a paisagem marinha.

O mar é recorrente nesse seu trabalho. "Aioká" (Alcyvando Luz e Carlos Coqueijo) explora a magia do mundo das águas, da morada de Iemanjá. Na performance desta canção, que foi o bis de encerramento do show, Cláudia Cunha em seu vestido branco, longo e rodado, com cabelos soltos e grandes, emoldurada pelo mar da Bahia, não poderia representar melhor o canto de Janaína, abrindo os festejos da Rainha do Mar do dia seguinte.

A circularidade e a infinitude que a imagem da roda traduz estão presentes nas canções, especialmente em "Responde à Roda" (Cláudia Cunha e Manuela Rodrigues), "No Girar de Alice" (Cláudia Cunha) e "Din Don" (Rodolfo Stroeter).

Na música que dá título ao cd, a gente entra com a cantora numa ciranda, brincadeira que integra todos os participantes numa girada só. Mesmo quem não está dentro é chamado para entrar. Essa comunhão é sagrada para que a vida ganhe em felicidade. É esse sentimento que vemos iluminado no rosto de Cláudia ao cantar "No Girar de Alice". A leveza da roda de Alice, "enquanto a tardinha cai macia no quintal", é a mesma leveza da voz de Cláudia ao cair da tarde mansa.

E já que a roda é elemento simbólico marcante na Bahia (roda de candomblé, roda de fogueiras de São João, roda de conversa), "Din Don" nos joga numa roda de capoeira e de samba. Tudo nesta roda nos lembra uma festa de rua de Salvador. Os instrumentos musicais citados na letra, como tambor e pandeiro, as evoluções dos capoeiristas e a dança da baiana referenciam ao formato da roda. A circularidade de que falei antes, é também memória. E Mestres Pastinha e Bimba são sempre lembrados numa roda de capoeira.

O acento em cantigas e canções folclóricas ou recriações dessas narrativas musicais é outro ponto forte do repertório do cd. Em letras como "Ganga-Zumbi" e "Putirum" (Sérgio Santos e Paulo César Pinheiro), os compositores jogam na roda de nosso imaginário elementos da cultura, das línguas e da religiosidade afro-ameríndia brasileira. Calunga, canjerê, Zambiapongo, Mutalambô, Zumbi, Ogum, gongá, cunhã, quarup, cauim, Mairá, Xingu, ararajuba, cocar, ajuru... Uma festa com trilha sonora que busca a integração a partir da dança. Não por acaso, expressão corporal que índios e negros ritualizam até hoje.

Sambas maneiros entram também na ciranda colorida e festiva como "Pra você gostar de mim" (Zé Renato e Joyce), delicado e sonhador, "Cabe um tanto" (Manuela Rodrigues), com arranjo pungente e acústico de Luciano Salvador Bahia, e "Seu Moço" (Roberto Mendes e Hermínio Bello de Carvalho). Nesta última o tom percussivo é bem do Recôncavo, não à toa com a ajuda vocal do próprio compositor Roberto Mendes, exaltando sua Santo Amaro de fundo de Baía.

O cd termina com "Auto-retrato" (Egberto Gismonti e Geraldo Carneiro). Só acompanhada com o piano, Claúdia canta a memória de um "cantor de samba", mas ela mesma se reveste em um trovador solitário das multidões, quando nos faz caminhar e girar pelo vasto mundo de suas lembranças e das nossas também.

Cláudia Cunha em seu My Space disponibiliza cinco músicas para quem quiser levitar com sua voz serena de soprano, mas que não fique apenas nesse aperitivo. A roda só gira toda se você ouvir todo o cd e assistir à sua performance no palco.

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