sexta-feira, 2 de janeiro de 2009

Aljazeera na Bahia


Desde 11 de setembro de 2001 que o mundo ocidental (ou pós-ocidental a partir daquela data) tem ouvido falar constantemente em Aljazeera (الجزيرة, em árabe: "A península") . Malgrado suas conseqüências para o mundo, o ataque terrorista ao World Trade Center tornou-se emblemático para esta emissora de televisão, criada em 1996, Catar, no Golfo Pérsico. Atualmente é o maior canal de notícias do Oriente Médio. E já conquista o mundo pela Aljazeera Internacional. Seu sinal se espalha por 120 milhões de residências em 80 países.

A repórter Daniela Pinheiro, da revista Piauí, mostra que a televisão sediada em Doha, capital de um dos países com maior renda per capita do mundo, tem desafetos e censores não só nos Estados Unidos, mas também dentro da Liga Árabe, da qual o Catar é membro.

O emir do país, xeque Hamad bin Khalifa al-Thani, é fundador-proprietário da televisão e, segundo diretores da emissora, ele não interfere na linha editorial das reportagens, embora no próprio país a censura à imprensa ainda exista. É um paradoxo, já que a intenção da Aljazeera é ser conhecida no mundo inteiro como contraponto aos canais tradicionais de cobertura jornalística dos Estados Unidos e da Europa, como CNN e BBC.

Plagiando o título de um dos clássicos dos Estudos Culturais, "Orientalismo: o Oriente como invenção do Ocidente", de Edward Said, árabe nascido em Jerusalém, é possível que Aljazeera esteja reinventando o ocidente a partir de Catar. E mostrar a ignorância que o Ocidente tem sobre o Oriente Médio, que ele próprio inventou.

Nas Américas, a emissora já conta com escritórios em Buenos Aires e Caracas e correspondentes em São Paulo e Cidade do México. Planeja abrir outra sucursal em Bogotá. Não conseguiu permissão para adentrar nos Estados Unidos por motivos que ninguém precisa fazer esforço para entender. Ela foi acusada por George W. Bush de ser "a porta-voz do terror do mundo", pelo fato de divulgar vídeos com declarações de Osama bin Laden sobre suas ações terroristas. Mas é dos Estados Unidos o maior número de acessos do conteúdo da Aljazeera disponibilizado no You Tube, onde tem um canal exclusivo.

Até no Brasil, país democrático, a Aljazeera sofreu censura. Segundo Daniela Pinheiro, mesmo autorizada a cobrir a passagem de Bush por São Paulo em 2007, a televisão não pôde transmitir do centro da cidade. João Carlos Saad, da Rede Bandeirantes, de origem sírio-libanesa, cedeu o terraço da emissora para a cobertura.

A Aljazeera já fez diversas reportagens sobre o Brasil. Especificamente sobre a Bahia, produziu matérias com captação exclusiva de imagens e depoimentos, mas ainda repetindo informações acerca da identidade baiana, já concebidas como inerentes e essencialistas da cultura e sociedade locais.

O tratamento e a dinâmica do conteúdo pautado foge um pouco das reportagens viciadas de emissoras estrangeiras do Ocidente, as maiores produtoras de imagens estereotipadas sobre o Brasil para "inglês ver". Talvez a Aljazeera por ser um outro olhar daquilo que podemos chamar de "equívocos cristalizados" do Ocidente sobre o próprio Ocidente (leia-se Estados Unidos e Europa sobre a América Latina), esteja pensando numa rede de comunicação mundial pós-colonialista, ou seja, de verbalização o que outrora e mais recentemente mesmo o universalismo eurocêntrico calou ou ocultou.

E neste sentido, duas reportagens sobre a Bahia chamaram a minha atenção. A primeira, "Obama inspires afro-brazilians" , é sobre a repercussão da vitória de Barack Obama em Salvador. Representantes de comunidades negras ligadas ao candomblé e aos movimentos sociais de combate ao racismo e a intolerância religiosa comentam, como Marcos Rezende, do Coletivo de Entidades Negras, sobre a importância de um negro ascender ao posto de governante de um país de maioria anglo-saxônica e como isto influenciará na relação dos Estados Unidos com o mundo.

A origem do presidente, negro-mestiço de pai africano e muçulmano com mãe norte-americana e branca, nascido no Havaí, oposição a Bush contra a invasão no Iraque e aberto ao diálogo com a diversidade, assim como a resposta de outras culturas e povos a esta possibilidade de aproximação, já é por si só uma pauta permanente na grade da Aljazeera, ela mesma com equipes de repórteres e apresentadores de diversas nacionalidades e etnias.

A outra reportagem, "Race and Racism in Latin America: Brazil", trata do racismo no Brasil, com depoimentos do promotor Almiro Sena Soares, coordenador da Promotoria de Combate ao Racismo do Ministério Público da Bahia e do Dep. Bira Coroa, da Comissão de Educação da Assembléia Legislativa. O ponto principal da matéria é sobre as ações afirmativas na Educação em vigor no país. Para exemplificar, a repórter enfatiza que a inserção do negro na Universidade, possibilitada pelas cotas, diminui as diferenças raciais e econômicas entre negros e brancos.

Obviamente que a matéria é uma tentativa de abordar assunto tão complexo e cheio de desdobramentos sobre as relações inter-étnicas no Brasil. Já começa com um senão: reproduz o mito da democracia racial, através de uma legenda "Racism in Brazil: diverse society struggles for harmony". A harmonia deveria ser trocada por reparação. Não só ela racial, mas também social. Embora não existam conflitos abertos e segregacionistas como se viram na África do Sul e nos Estados Unidos, a tal harmonia imaginada no Brasil só tem um fim, ou seja, edulcorar o que é fel na vida cotidiana dos negros brasileiros.

O acesso ao conteúdo completo das reportagens de Aljazeera é feito pelo site oficial: http://english.aljazeera.net/. A divisão desses conteúdos é feita por regiões. Sobre o Brasil, está em Américas, onde também incluem os Estados Unidos. Isto é bem sintomático quanto ao projeto de expansão de seu sinal e influência, porque diferentemente dos Estados Unidos, a Aljazeera não enxerga o país do Tio Sam um continente ou um mundo a parte dos outros, mas integrado a uma geografia da qual precisa ter relações de respeito à soberania de cada nação e não de ingerência em seus assuntos internos.