domingo, 21 de dezembro de 2008

Salvador, por Antonio Risério

A entrevista de Antonio Risério à Revista Metrópole (n°17) acendeu a luz de alerta para a situação caótica em que está Salvador. Autor de estudos e livros, como "Carnaval Ijexá", "Caymmi: uma utopia de lugar" e "Uma história da Cidade da Bahia", Antonio Risério colabora em diversos meios informativos, comentando não só questões políticas e culturais relativas à Bahia, mas também sobre temas nacionais, como o racismo à brasileira, abordado em seu último trabalho "A utopia brasileira e os movimentos negros".

O problema social de Salvador tem preocupado o antropólogo nos últimos tempos e sua reação tem sido ferina aos gestores que passaram e passam pela Câmara e Prefeitura. Nessa entrevista, ele, em um momento de muita lucidez e ironia, diz que a pobreza de Salvador pode ser vista até por um marciano ou por satélite.

A divisão territorial e social da cidade é, segundo sua dedução, 50 mil habitantes por quilômetro quadrado em uma área pobre, e uns 500 habitantes por quilômetro quadrado em uma área rica. "Se a gente fizer um levantamento desse, a gente vai ter um retrato preciso e brutal de como a pobreza se expressa em cada centímetro do solo da cidade", afirma.

Não é preciso muita altura para ver do espaço esta divisão perversa entre os soteropolitanos. Daqui mesmo, a rés do chão, a gente vê o que a Cidade da Bahia está se transformando nesta primeira década do milênio. Vê-se a pobreza inclusive sendo invadida por empreendimentos imobiliários de luxo, por não terem mais espaço em bairros outrora de classe alta.

Se as construtoras quiserem, esses condomínios viram oásis em meio às invasões ou bairros populares e mudam até de nome a localização. Fazem muros, guaritas, acessos exclusivos, portões e se isolam. As janelas dos patrões ficam viradas para o que resta ainda de verde e de paisagem limpa. As áreas de serviço, onde a empregada suburbana dorme, ficam para as casas apinhadas de eternit e blocos à mostra, afinal, ela está acostumada a esta realidade e não tomará um susto ao acordar.

Salvador não foi planejada para enfrentar essa torrente humana que nasce e cresce aqui, ou vem até ela do interior e de outros Estados. Nem seu trunfo de ser cidade-dormitório, por três décadas, do Pólo Petroquímico de Camaçari, assim como do CIA, tem conseguido afastar os altos índices de desemprego e baixo desenvolvimento econômico. Salvador não está entre as capitais do País que mais produzem riquezas. Cidades menores tomam nosso posto.

Pernambuco, o segundo Estado com maior PIB do Nordeste, a partir de sua Recife "dos rios cortados de pontes", está ganhando da Bahia em mobilização de seus políticos e intelectuais contra a estagnação econômica, a pasmaceira cultural e o agravamento social.

O debate sobre essas questões tem sido feito, mas a passos indesculpavelmente lentos. A tal preguiça baiana parece engessar as cabeças da elite intelectual e acadêmica da cidade. As universidades (Federal e do Estado) se isolam em campi, como os ricos em condomínios, e não dialogam com outras instituições para a elaboração e execução de planos estruturantes que reflitam dentro e fora da academia.

Não é só abrir mais vagas para cotistas ou não-cotistas, é também possibilitar, por exemplo, que o estudante do subúrbio não seja obrigado a pegar mais de um transporte para chegar à Universidade. O metrô há dez anos sendo construído (e que já devia estar na sua quarta fase de expansão) ainda está na metade da linha 1. Não há nenhuma instituição de ensino superior pública na periferia. São necessários para muitos estudantes quatros transportes diários para estudar e voltar para casa.

Segundo reportagem de A Tarde (22.12), a concentração de renda é proporcional ao de nível de escolaridade. Enquanto quem mora no Itaigara, a taxa é 15%, no Bairro da Paz é 0%. A divisão de que fala Risério da cidade afeta a educação. A assistência estudantil da Ufba e da Uneb é insuficiente para atender a demanda de estudantes pobres. O poder público vira as costas para a periferia que concentra mais da metade da população da cidade.

Os atuais governos municipal e estadual brincam com a paciência da população, quando seus partidos de sustentação se digladiam pelo poder em 2010 e esquecem que o cidadão quer resultados agora. A mediocridade e a incompetência campeiam por toda a cidade e beneficiam aqueles que menos têm responsabilidade com o coletivo. É pontual o que Risério fala:

"A atual população de Salvador não está à altura da cidade que herdou, não está à altura da cidade que recebeu, por isso que está avacalhando ela a cada dia que passa. Uma cidade cada vez mais maltratada, mais feia. É uma elite desinformada, provinciana, colonizada, mimética. Eu vivi minha adolescência na cidade de Jorge Amado, de Vivaldo da Costa Lima, de Pierre Verger, de Caribé, de Glauber Rocha. E hoje é a cidade de quem? De Nizan Guanaes? Do axé music? De Bel do chiclete? Do prefeito que nós temos? Dos quadros políticos atuais? Um drama da gente hoje é que Salvador tem crescido muito. Salvador é atualmente uma cidade grande, onde todo mundo pensa pequeno. Os empresários, os políticos, os intelectuais, os artistas... Isso é um drama. Quanto mais a cidade cresce, mais o pensamento é menor, se é que a gente pode falar de pensamento. Salvador também não é só a cidade do desemprego, como a gente estava falando, é a capital da desinformação, da sub-cidadania."

Afora o romantismo de Risério de uma Bahia idealizada por Verger e Jorge Amado, que naquele tempo outros tantos problemas estavam na ordem do dia, como a perseguição policial aos terreiros de candomblé, assim mesmo concordo com o antropólogo quanto ao menosprezo que essa população elitizada e aboletada no show business e nos cargos políticos tem pelo coletivo, privilegiando apenas seus pares.

Aqui mesmo no meu blog criei uma série chamada Território Invísivel de Salvador, com o objetivo de traçar um roteiro desta Salvador antiga e contemporânea esquecida por todos nós, já que o foco e o interesse têm sido outros e cuja maquiagem (ou máscara) não tarda, embora persista, em desmanchar. É uma Salvador falsa e fugaz a que nos oferecem. Num orgulho e sentimentalismo tacanhos, engolimos como se fosse nossa imagem e semelhança perfeitas.

O carnaval, um de nossos mais interessantes e possíveis momentos de integração, todo ano se mostra cada vez mais excludente através dos camarotes e blocos de trio. Levam-se para a Avenida as mesmas divisões territoriais dos paraísos artificiais dos condomínios de luxo. A rua que é do povo vira um loteamento.

domingo, 7 de dezembro de 2008

Capitu


Capitu está pronta de novo para entrar em cena. Ela não se cansa. Embora com quase 110 anos, ela ainda viceja ousadia, inteligência e feminilidade. Colabora para isso, o tempo. Em vez de a envelhecer, ele a amadurece. Fruto em ponto de colheita. Não para ser comido, mas para ser admirado, posto em fruteira no centro da mesa e ali ficar.

Penso eu que ela não queria ouvir essa peroração. Senhora de si, Capitu não precisa de elogios pelo que não fez (ou fez com muito tato). Não era dissimulada, como lhe impingiram os casmurros de plantão. Mandou todos às favas.

No centenário de morte de seu criador, eis que ela aparece redentora. Se é Bentinho quem narra a história, na condição mesma de protagonista, Capitu, a narrada, é quem dá a ele esta visibilidade, porque o drama de sua vida é encenado a partir da entrada em cena dela. Conhecemos Bentinho não por ele próprio, mas por Capitu.

É impressionante o quanto ela consegue impor-se na fala de Bentinho, até porque, diferentemente do que falam dela, é Bentinho quem vive de aparências. Quanto mais se pergunta se Capitu traiu ou não, mais sua presença desperta nos leitores a certeza de que ela não suportava alternativas. Escolhera tudo sem vacilar ou se arrepender. Tanto é que seus olhos de ressaca tinham uma força maior do que Bentinho podia suportar. Enquanto ela fixava os seus nos dele, ele se agarrava às orelhas, aos braços, aos cabelos da amada para não ser tragado.

E foram os olhos de Capitu que atraíram a atenção de Luiz Fernando Carvalho, que buscou essa mesma força nos olhos da atriz que representaria a personagem machadiana na microssérie. Só o fato de realizar uma obra "a partir do romance Dom Casmurro" e não baseado ou adaptado da mesma obra, mudando a estratégia narrativa e dando ênfase à Capitu, conjugado a uma linguagem audiovisual e encenação singulares para televisão, o diretor demonstra mais uma vez que transpor obras literárias para outras mídias, ainda mais de um clássico, é ler com outros olhos, reinventando-o.

Machado mesmo possibilitou isto, na medida em que, através de seus narradores, convidava os leitores a participarem da história, numa época em que o estatuto do autor era visto como superior ao de quem recebia a obra. A intenção se sobrepunha à recepção. Essa interatividade sugerida por Machado é recriada na microssérie com a aproximação que Luiz Fernando faz com elementos simbólicos-culturais do telespectador-leitor contemporâneo.

Configurou-se como grave, solene e mesmo casmurro a maioria dos produtos televisivos que representam épocas passadas, como se o mundo de outrora fosse sempre em preto e branco ou em sépia. Mesmo que não se fuja disso em "Capitu", a sua linguagem é híbrida no plano visual, sonoro e verbal, a começar pela abertura que, quanto à trilha sonora, vai dos instrumentos de cordas para câmara à bateria e guitarra de hardcore.

Esta integração entre o previsível de uma constituição de época e a possibilidade de sua reconstituição se desdobra durante toda a microssérie, como nas imagens de trens a vapor antigos e de trens elétricos atuais, onde, em meio a figurantes sem cartola e bengala, trabalhadores da grande metrópole fluminense, Bentinho explica seu apelido. E o que dizer do baile em que todos os personagens dançam ouvindo mp3?

É certo que Luiz Fernando vai mais uma vez receber críticas pela sua ousadia, mas aos poucos ele se afirma como um dos mais criativos diretores de televisão. Trajetória que começou no cinema e desaguou na televisão. Seu primeiro e único longa-metragem é "Lavoura Arcaica", baseado no romance de Raduan Nassar.

"Capitu" é a segunda microssérie do projeto de Luiz Fernando chamado Quadrante, que visa a recriar textos de autores de diversas regiões brasileiras. O primeiro foi "A Pedra do Reino", de Ariano Suassuna (PB), comentado aqui no blog. O próximo será "Dançar Tango em Porto Alegre", de Sérgio Faraco (RS), e o último,"Dois Irmãos", de Milton Hatoum (AM).

Esta aproximação de Luiz Fernando Carvalho com literatura não é de se estranhar: ele estudou letras. Isso não é tudo para se fazer boa adaptação, mas também não é uma referência qualquer. Aguardemos os dois outros quadrantes dessa circunferência literária desenhada por Luiz Fernando. Ah, ele também estudou arquitetura. É engenho e arte na televisão.