domingo, 21 de dezembro de 2008

Salvador, por Antonio Risério

A entrevista de Antonio Risério à Revista Metrópole (n°17) acendeu a luz de alerta para a situação caótica em que está Salvador. Autor de estudos e livros, como "Carnaval Ijexá", "Caymmi: uma utopia de lugar" e "Uma história da Cidade da Bahia", Antonio Risério colabora em diversos meios informativos, comentando não só questões políticas e culturais relativas à Bahia, mas também sobre temas nacionais, como o racismo à brasileira, abordado em seu último trabalho "A utopia brasileira e os movimentos negros".

O problema social de Salvador tem preocupado o antropólogo nos últimos tempos e sua reação tem sido ferina aos gestores que passaram e passam pela Câmara e Prefeitura. Nessa entrevista, ele, em um momento de muita lucidez e ironia, diz que a pobreza de Salvador pode ser vista até por um marciano ou por satélite.

A divisão territorial e social da cidade é, segundo sua dedução, 50 mil habitantes por quilômetro quadrado em uma área pobre, e uns 500 habitantes por quilômetro quadrado em uma área rica. "Se a gente fizer um levantamento desse, a gente vai ter um retrato preciso e brutal de como a pobreza se expressa em cada centímetro do solo da cidade", afirma.

Não é preciso muita altura para ver do espaço esta divisão perversa entre os soteropolitanos. Daqui mesmo, a rés do chão, a gente vê o que a Cidade da Bahia está se transformando nesta primeira década do milênio. Vê-se a pobreza inclusive sendo invadida por empreendimentos imobiliários de luxo, por não terem mais espaço em bairros outrora de classe alta.

Se as construtoras quiserem, esses condomínios viram oásis em meio às invasões ou bairros populares e mudam até de nome a localização. Fazem muros, guaritas, acessos exclusivos, portões e se isolam. As janelas dos patrões ficam viradas para o que resta ainda de verde e de paisagem limpa. As áreas de serviço, onde a empregada suburbana dorme, ficam para as casas apinhadas de eternit e blocos à mostra, afinal, ela está acostumada a esta realidade e não tomará um susto ao acordar.

Salvador não foi planejada para enfrentar essa torrente humana que nasce e cresce aqui, ou vem até ela do interior e de outros Estados. Nem seu trunfo de ser cidade-dormitório, por três décadas, do Pólo Petroquímico de Camaçari, assim como do CIA, tem conseguido afastar os altos índices de desemprego e baixo desenvolvimento econômico. Salvador não está entre as capitais do País que mais produzem riquezas. Cidades menores tomam nosso posto.

Pernambuco, o segundo Estado com maior PIB do Nordeste, a partir de sua Recife "dos rios cortados de pontes", está ganhando da Bahia em mobilização de seus políticos e intelectuais contra a estagnação econômica, a pasmaceira cultural e o agravamento social.

O debate sobre essas questões tem sido feito, mas a passos indesculpavelmente lentos. A tal preguiça baiana parece engessar as cabeças da elite intelectual e acadêmica da cidade. As universidades (Federal e do Estado) se isolam em campi, como os ricos em condomínios, e não dialogam com outras instituições para a elaboração e execução de planos estruturantes que reflitam dentro e fora da academia.

Não é só abrir mais vagas para cotistas ou não-cotistas, é também possibilitar, por exemplo, que o estudante do subúrbio não seja obrigado a pegar mais de um transporte para chegar à Universidade. O metrô há dez anos sendo construído (e que já devia estar na sua quarta fase de expansão) ainda está na metade da linha 1. Não há nenhuma instituição de ensino superior pública na periferia. São necessários para muitos estudantes quatros transportes diários para estudar e voltar para casa.

Segundo reportagem de A Tarde (22.12), a concentração de renda é proporcional ao de nível de escolaridade. Enquanto quem mora no Itaigara, a taxa é 15%, no Bairro da Paz é 0%. A divisão de que fala Risério da cidade afeta a educação. A assistência estudantil da Ufba e da Uneb é insuficiente para atender a demanda de estudantes pobres. O poder público vira as costas para a periferia que concentra mais da metade da população da cidade.

Os atuais governos municipal e estadual brincam com a paciência da população, quando seus partidos de sustentação se digladiam pelo poder em 2010 e esquecem que o cidadão quer resultados agora. A mediocridade e a incompetência campeiam por toda a cidade e beneficiam aqueles que menos têm responsabilidade com o coletivo. É pontual o que Risério fala:

"A atual população de Salvador não está à altura da cidade que herdou, não está à altura da cidade que recebeu, por isso que está avacalhando ela a cada dia que passa. Uma cidade cada vez mais maltratada, mais feia. É uma elite desinformada, provinciana, colonizada, mimética. Eu vivi minha adolescência na cidade de Jorge Amado, de Vivaldo da Costa Lima, de Pierre Verger, de Caribé, de Glauber Rocha. E hoje é a cidade de quem? De Nizan Guanaes? Do axé music? De Bel do chiclete? Do prefeito que nós temos? Dos quadros políticos atuais? Um drama da gente hoje é que Salvador tem crescido muito. Salvador é atualmente uma cidade grande, onde todo mundo pensa pequeno. Os empresários, os políticos, os intelectuais, os artistas... Isso é um drama. Quanto mais a cidade cresce, mais o pensamento é menor, se é que a gente pode falar de pensamento. Salvador também não é só a cidade do desemprego, como a gente estava falando, é a capital da desinformação, da sub-cidadania."

Afora o romantismo de Risério de uma Bahia idealizada por Verger e Jorge Amado, que naquele tempo outros tantos problemas estavam na ordem do dia, como a perseguição policial aos terreiros de candomblé, assim mesmo concordo com o antropólogo quanto ao menosprezo que essa população elitizada e aboletada no show business e nos cargos políticos tem pelo coletivo, privilegiando apenas seus pares.

Aqui mesmo no meu blog criei uma série chamada Território Invísivel de Salvador, com o objetivo de traçar um roteiro desta Salvador antiga e contemporânea esquecida por todos nós, já que o foco e o interesse têm sido outros e cuja maquiagem (ou máscara) não tarda, embora persista, em desmanchar. É uma Salvador falsa e fugaz a que nos oferecem. Num orgulho e sentimentalismo tacanhos, engolimos como se fosse nossa imagem e semelhança perfeitas.

O carnaval, um de nossos mais interessantes e possíveis momentos de integração, todo ano se mostra cada vez mais excludente através dos camarotes e blocos de trio. Levam-se para a Avenida as mesmas divisões territoriais dos paraísos artificiais dos condomínios de luxo. A rua que é do povo vira um loteamento.

domingo, 7 de dezembro de 2008

Capitu


Capitu está pronta de novo para entrar em cena. Ela não se cansa. Embora com quase 110 anos, ela ainda viceja ousadia, inteligência e feminilidade. Colabora para isso, o tempo. Em vez de a envelhecer, ele a amadurece. Fruto em ponto de colheita. Não para ser comido, mas para ser admirado, posto em fruteira no centro da mesa e ali ficar.

Penso eu que ela não queria ouvir essa peroração. Senhora de si, Capitu não precisa de elogios pelo que não fez (ou fez com muito tato). Não era dissimulada, como lhe impingiram os casmurros de plantão. Mandou todos às favas.

No centenário de morte de seu criador, eis que ela aparece redentora. Se é Bentinho quem narra a história, na condição mesma de protagonista, Capitu, a narrada, é quem dá a ele esta visibilidade, porque o drama de sua vida é encenado a partir da entrada em cena dela. Conhecemos Bentinho não por ele próprio, mas por Capitu.

É impressionante o quanto ela consegue impor-se na fala de Bentinho, até porque, diferentemente do que falam dela, é Bentinho quem vive de aparências. Quanto mais se pergunta se Capitu traiu ou não, mais sua presença desperta nos leitores a certeza de que ela não suportava alternativas. Escolhera tudo sem vacilar ou se arrepender. Tanto é que seus olhos de ressaca tinham uma força maior do que Bentinho podia suportar. Enquanto ela fixava os seus nos dele, ele se agarrava às orelhas, aos braços, aos cabelos da amada para não ser tragado.

E foram os olhos de Capitu que atraíram a atenção de Luiz Fernando Carvalho, que buscou essa mesma força nos olhos da atriz que representaria a personagem machadiana na microssérie. Só o fato de realizar uma obra "a partir do romance Dom Casmurro" e não baseado ou adaptado da mesma obra, mudando a estratégia narrativa e dando ênfase à Capitu, conjugado a uma linguagem audiovisual e encenação singulares para televisão, o diretor demonstra mais uma vez que transpor obras literárias para outras mídias, ainda mais de um clássico, é ler com outros olhos, reinventando-o.

Machado mesmo possibilitou isto, na medida em que, através de seus narradores, convidava os leitores a participarem da história, numa época em que o estatuto do autor era visto como superior ao de quem recebia a obra. A intenção se sobrepunha à recepção. Essa interatividade sugerida por Machado é recriada na microssérie com a aproximação que Luiz Fernando faz com elementos simbólicos-culturais do telespectador-leitor contemporâneo.

Configurou-se como grave, solene e mesmo casmurro a maioria dos produtos televisivos que representam épocas passadas, como se o mundo de outrora fosse sempre em preto e branco ou em sépia. Mesmo que não se fuja disso em "Capitu", a sua linguagem é híbrida no plano visual, sonoro e verbal, a começar pela abertura que, quanto à trilha sonora, vai dos instrumentos de cordas para câmara à bateria e guitarra de hardcore.

Esta integração entre o previsível de uma constituição de época e a possibilidade de sua reconstituição se desdobra durante toda a microssérie, como nas imagens de trens a vapor antigos e de trens elétricos atuais, onde, em meio a figurantes sem cartola e bengala, trabalhadores da grande metrópole fluminense, Bentinho explica seu apelido. E o que dizer do baile em que todos os personagens dançam ouvindo mp3?

É certo que Luiz Fernando vai mais uma vez receber críticas pela sua ousadia, mas aos poucos ele se afirma como um dos mais criativos diretores de televisão. Trajetória que começou no cinema e desaguou na televisão. Seu primeiro e único longa-metragem é "Lavoura Arcaica", baseado no romance de Raduan Nassar.

"Capitu" é a segunda microssérie do projeto de Luiz Fernando chamado Quadrante, que visa a recriar textos de autores de diversas regiões brasileiras. O primeiro foi "A Pedra do Reino", de Ariano Suassuna (PB), comentado aqui no blog. O próximo será "Dançar Tango em Porto Alegre", de Sérgio Faraco (RS), e o último,"Dois Irmãos", de Milton Hatoum (AM).

Esta aproximação de Luiz Fernando Carvalho com literatura não é de se estranhar: ele estudou letras. Isso não é tudo para se fazer boa adaptação, mas também não é uma referência qualquer. Aguardemos os dois outros quadrantes dessa circunferência literária desenhada por Luiz Fernando. Ah, ele também estudou arquitetura. É engenho e arte na televisão.

domingo, 30 de novembro de 2008

Domingos Sodré: um sacerdote africano


João José Reis sabe contar história. A sua técnica narrativa surpreende pela qualidade e quantidade de imagens e informações que alinhava para dar visibilidade a acontecimentos e personagens esquecidos da história da Bahia no século XIX.

Desde "A morte é uma festa" (1991) e "Rebelião escrava na Bahia" (2003), João José Reis desenvolve um gênero historiográfico cuja estrutura privilegia o movimento pendular de abordagem de um tema. A partir de um episódio ou personagem, ele amplia para a sociedade onde surgiu e retorna para o ponto inicial a fim de entender como aquele acontecimento ou pessoa se relaciona e interfere (com e)na macro-história, como neste caso, na escravidão. Nesse ir e vir, ele faz uma leitura diferente e realçadora das relações sócio-culturais de uma Bahia negra e escravista, até então feita por um olhar míope ou turvado de outros historiadores.

Aliadas as técnicas de escrita e de pesquisa, esta em sua maioria de fontes primárias, João José Reis nos presenteia com livros cada vez mais bem elaborados quanto ao trato científico, mas sem escusar da linguagem e do formato acessíveis ao leitor não-acadêmico interessado em História.

Neste seu último trabalho, "Domingos Sodré: um sacerdote africano - escravidão, liberdade e candomblé na Bahia do século XIX"(2008), ele se aproxima do que chamamos em Literatura de biografia crítica, em que se analisa a vida de uma personagem a partir de sua mediação e produção num dado contexto literário ou extra-literário. Procura-se entender assim sua participação como mediador simbólico e o resultado disso no seu ambiente de circulação.

Domingos Sodré, africano liberto, proprietário de escravos e curandeiro, segundo o autor em entrevista a Brasileiros, foi quem pediu para não continuar no limbo da história ou mofar nos arquivos. Personagens negros, deliberadamente apagados (aqui a associação com morte e ocultação de cadáver não é mero efeito retórico), aparecem aos olhos de quem não é cego ou mesmo de quem não é surdo, quando ainda existem testemunhas orais que dão conta dessas trajetórias anônimas.

A Bahia de Domingos Sodré é narrada com maestria por João José Reis. Ele nos faz penetrar nos interstícios da vida de seus atores, diretamente ligados a Domingos ou a ele transversalmente relacionados, para mostrar as estratégias de sobrevivência e sociabilidade de homens e mulheres negros em tempo de cerceamentos e submissões.

Domingos Sodré, pelo que deixou até então, não pode ser considerado um autor de textos literários, mas os documentos jurídicos e burocráticos resultantes de suas atividades (e atuação, como agente de sua história) traçam uma linha narrativa também autobiográfica que possibilita a escrita de si por outro revelada.

E neste sentido, a autoria é compartilhada: João José Reis escreve uma biografia de uma autobiografia não escrita. A leitura vale por tudo que precisamos saber sobre essas vidas e vozes proscritas.

quarta-feira, 12 de novembro de 2008

Acontece que eu sou baiano


Esta será, possivelmente, a foto de meu livro "Acontece que eu sou baiano: identidade e memória cultural no cancioneiro de Dorival Caymmi". Ele sobe a Ladeira do Pelô, com seu violão no ombro. É como disse Jorge Amado: "Caymmi é o cantor das graças da Bahia". E o Pelourinho é emblemático nesta composição identitária da Bahia. Igrejas, sobrados, ladeiras. Foi a partir dessa geografia pessoal e afetiva, que ainda inclui Itapuã, que Caymmi reinventou sua São Salvador.

Depois de quatro anos de dissertação defendida no mestrado de Literatura e Cultura, eis que finalmente o livro oriundo daquela pesquisa será lançado. Aprovado pela FAPESB para receber incentivo de publicação, o livro sairá pela Eduneb no próximo ano.

Estou felicíssimo por isto, porque desde a pós-graduação até o órgão de fomento à pesquisa, passando pela editora, o trabalho sobre Caymmi tem recebido pareceres de excelência e qualidade científica.

Agora é hora de aparar as arestas, revisar, inserir mais informações para uma edição mais atualizada sobre Caymmi e sua obra. Muita coisa mudou de quatro anos para cá. Algumas abordagens feitas perderam o viço do momento, mas no geral, minha leitura do cancioneiro caymmiano e de sua personalidade continua seguindo uma linha analítica e interpretativa que contesta a baianidade como essencialista.

Este livro é uma homenagem antecipada que eu faria a Caymmi quando ele fizesse 100 anos. Eu esperava que ele chegasse até lá. Embora muito doente, ainda assim a memória do compositor aos 94 anos era prodigiosa. Ele era o último de uma geração de artistas da Era do Rádio, portanto, viveu diferentes fases da música popular brasileira, sem que fosse visto como passadista ou antiquado. Ao contrário, Caymmi é reverenciado por todas as tribos de músicos e cantores.

Em 2009, Caymmi e os afoxés serão tema do Carnaval. Se Caymmi fosse escolhido, preterindo os afoxés, assim mesmo estaria fazendo uma homenagem a esses grupos musicais negros, conhecidos também por "candomblés de rua". Caymmi foi autor de uma canção chamada "Afoxé" (1975) em que canta a perfomance do ijexá. Se fosse escolhido o tema afoxés, lembraríamos também de Caymmi, porque ele, sem dúvida, é a própria Bahia carnavalizada.

domingo, 5 de outubro de 2008

O chute, o latido, o tiro e o voto


Chutar cachorro morto é covardia, chutar morador de rua para expulsá-lo de sua porta é humilhação.

O soldado da PM, Welington Sena Mariano, que fazia a ronda da área externa da Câmara Municipal de Salvador, não pestanejou em ser covarde e abusar de seu poder de polícia: escorraçou a pontapés um flanelinha que dormia na entrada da Casa Legislativa da cidade e alvejou o cachorro dele, apelidado de Branco, que reagiu para proteger seu dono da violência policial.

A justificativa do militar foi a de que ele foi atacado pelos cães que acompanhavam Índio, como o guardador de carros Cristiano Lisboa dos Santos é conhecido no local. A atitude do soldado é condenável pelos mesmos motivos justificados.

Como agente de segurança pública, treinado para prestar serviço à população, mesmo aquela que como Índio seja um excluído (embora trabalhe na informalidade para sobreviver), o soldado não seria atacado pelos cães se ele não agredisse o flanelinha. Se este não reagiu aos chutes do soldado por saber que a autoridade poderia prendê-lo por desacato, aqueles, por instinto, fizeram em seu lugar por agirem em defesa de quem os tem como companhia. Apenas isto, companhia. E amor.

O que Índio tem a oferecer a esses animais? Comida? Malmente os trocados dos motoristas dão para uma quentinha. Abrigo? Malmente um pedaço de papelão ou colchão esfarrapado ao relento. O presidente da Câmara, Sr. Valdenor Cardoso (Partido Trabalhista Cristão), candidato a reeleição, afastou o soldado de suas funções e só. Não deu assistência social ao cão e a seu dono. Que espírito cristão é esse?

O vira-lata que teve o pulmão transfixado pela bala foi levado a uma clínica particular e operado às expensas de uma comerciante local. Na cidade, não existe um órgão da Prefeitura que acolha o animal ferido para tratamento. Na cidade, não existe um órgão da Prefeitura que acolha o morador de rua faminto.

Só existem covardes que expulsam com chutes e limpam com tiros animais e pessoas que atravacam o caminho de uma cidade maníaca por beleza e aparência.

É essa Salvador que queremos? Quem salva esta cidade? A terceira população do País e a campeã do desemprego, da desigualdade.

Quando hoje me dirigia ao local de votação, em um bairro periférico, longe do centro onde moro (Nazaré), emocionei-me calado ao constatar que poderia com meu voto, mesmo utopicamente, a mudar a pobreza e a miséria desta cidade, visíveis em cada canto por onde se passe.

Embora banhos de luz e asfalto tenham sido feitos ao longo do trajeto até o Cabula (via Baixinha de Santo Antônio) e a Ribeira (via Rua Direta e Jardim Cruzeiro) para levar minha mãe, o que falta nesta cidade é Verdade, Honra e Vergonha, como já dizia Gregório de Matos há quatro séculos.

Ao votar nos candidatos a prefeito e a vereador, pensei no morador de rua, no cachorro e até no soldado. Seu ato, coitado, é o resultado também da ameaça de levar um tiro, mas diferentemente do vira-lata, de morrer mesmo.

domingo, 31 de agosto de 2008

CQC e os candidatos a prefeito de Salvador


O programa CQC (Custe o Que Custar), da Band, apresentado e ancorado por Marcelo Tas, um dos mais inteligentes comediantes da televisão brasileira atual, desembarcou em Salvador e entrevistou os candidatos a prefeito de Salvador (exceto Imbassaí).

O programa pegou de surpresa os candidatos com perguntas sobre a cidade que querem administrar. Perguntas como quantos anos a cidade foi capital do Brasil, não foi respondida corretamente por nenhum deles. ACM Neto disse o ano de fundação e o fim da condição de capital, mas calculou errado. Outra pergunta de história foi sobre o nome original da cidade. Todos responderam São Salvador, mas não completaram com Bahia de Todos os Santos. Mas nem a produção acertou, porque, se tomarmos a anterioridade dos tupinambás por estas plagas, o nome mesmo é Kirymuré. Mas deixa pra lá, é exigir muito de nossos candidatos.

João Henrique foi quem mais amarelou às perguntas. Só soube mesmo o preço da passagem do Elavador Lacerda, R$0,05 centavos. Aliás, única resposta acertada por todos. Espero que, quem for eleito, continue se lembrando deste valor nos próximos quatro anos. Assistam ao vídeo no link acima e saibam o dia da baiana de acarajé. Todo mundo gosta de acarajé, mas o trabalho que dá pra fazer é que é. Né, candidatos?

domingo, 11 de maio de 2008

Google-me.

Deu na Folha de São Paulo, 11 de maio: "Caça de xarás passou por três continentes". Jim Killeen, 40, ex-ator norte americano, jogou seu nome na barra de pesquisa do Google para ver o que é que dava. Além dele, descobriu 24 homônimos na web. Curioso por saber quem eram aqueles Jim Killeens, conseguiu apenas seis depoimentos deles para o documentário "Google me: the movie", dentre os quais, um que tem atração por transexuais e outro que é padre, mas contrário ao Papa quando o assunto é homossexualidade.

Você já fez "autosurfing" ou se "autogooglou"? Eu já fiz um "ego trip" deste algumas vezes para pesquisar um artigo meu, o qual tinha perdido o original, mas ciente de que estava publicado em algum site. Encontrado, gravado e impresso, não voltei mais a esta aventura.


Agora, vi-me estimulado a brincar com essa ferramenta extraordinária para fuçar homônimos e talvez descobrir o que eles fazem. Esta prática, segundo especialistas consultados pela reportagem, não deve ser vista como egocentrismo, mas como prevenção, por exemplo, na hora de procurar emprego. Algumas agências eventualmente rastreiam o nome do candidato para saber de sua passagem pela Web. Algo desabonador comentado por ele ou sobre ele, já acende o sinal amarelo. Cuidado com as comunidades do Orkut das quais vocês participam, coisas como "Falo mal de meu patrão!", "A mulher de meu patrão é gostosa!", "Adoro sair cedo do trabalho!", "Pra não ir ao trabalho, dou desculpa esfarrapada" etc.


Em pesquisa rápida, que durou apenas 0,22 segundos, descobri pela palavra Marielson aproximadamente 2.870 exibições. Haja gente, mas nem se compara à Maria (333 milhões, em 0,14 segundos).


Desses xarás, tem um jogador do ASA (Arapiraca, AL), um poeta (identificado como "um homem cheio de sabedoria), um árbitro de futebol de Vitória da Conquista (segundo Silvio Mendes, radialista, é a revelação no Campeonato Baiano-2008), um candidato a vereador em Ingá, PB (só teve 55 votos nas eleições de 2004) e um negociante de automóveis em Bento Gonçalves, RS. Já Marielson Carvalho, 133 exibições em 0,11 segundos, apenas um não sou eu. Trata-se de Marielson Carvalho da Costa, que consta de uma lista geral de concurso público do Banco do Brasil.

E o que dizer de Marielson de Carvalho Bispo da Silva? Em 13 exibições, 0,04 segundos de procura, não tem outro, somente eu.

É uma sensação estranha de satisfação por não ter ninguém igual a você (obviamente que nunca existirá) e também de frustração por não ter ninguém com quem não se possa comparar personalidades e comportamentos (mas não sei se seria proveitoso).

Eu conheço pessoalmente um Marielson. Confesso que procurei nele, tal qual um espelho, algumas semelhanças, no que de pronto, pelo menos fisicamente, só tinha diferenças. Não criamos laços de amizade, embora tenhamos trocado telefones para no dia de meu aniversário e no dele nos parabenizarmos. O que nunca ocorreu. Lá se vão três anos. Na última vez, quando nos vimos, parecíamos que estávamos saudosos um do outro, pois nos abraçávamos toda hora. Reagimos ao mesmo tempo, sem um milésimo de segundo a mais ou a menos, ao chamado de um amigo comum, que havia nos apresentado. Como ele queria falar conosco, nada mais prático do que chamar por um nome só. O "Oi, Maurício" saiu numa só voz. Gargalhada geral.

sábado, 10 de maio de 2008

A voz de Fabiana Cozza - Parte I

Fabiana Cozza, após evento lítero-musical em São Paulo.
Olha minha cara de novo fã!


Muitos intérpretes brasileiros deleitam meus ouvidos com suas vozes. Dão voz à voz de meus pensamentos. Neste elenco, as mulheres reinam absolutas.

Variados são os tons, os estilos e as perfomances dessas cantoras, a quem aplaudo de pé e entusiasticamente. Cássia Eller, Maria Bethânia, Ana Carolina, Jussara Silveira, Vanessa da Mata, Nana Caymmi, Rosa Passos, Quarteto em Cy, Clara Nunes, Elza Soares, Simone, Gal Costa, Olívia Hime...

A lista é extensa e a todo instante cresce tão logo eu seja fisgado por uma voz desconhecida, ou até já conhecida, mas ainda não ouvida com sensibilidade devida.Basta uma confluência de forças positivas, o acaso se assim quiserem, para que o encontro seja impactante a meus sentidos.

É assim que explico o que aconteceu quando, ano passado, numa noite de sábado paulistana (depois de uma tarde agitada e, por conta disto, um pouco cansativa) fui a um evento lítero-musical, convidado por meu amigo Suênio Campos.

Marcelino Freire leria trechos de seu livro "Contos negreiros" e Fabiana Cozza interpretaria entre, uma leitura e outra, músicas com temática afro-brasileira. Embora o palco do auditório fosse pequeno, ele não apequenou a voz possante de Fabiana. Fiquei impactado. E encantado. E irritado comigo mesmo por não tê-la conhecido antes. Onde tinha metido esses ouvidos?

Fabiana Cozza é paulistana, filha de um negro com uma descendente de italianos. Negra-mestiça, afro-ítalo-brasileira. Essa presença negra está na perfomance da cantora. Voz, postura de cena e repertório. E olha que eu ainda não tinha ouvido seu cd de estréia, "O Samba é Meu Dom" (2004), e o que ela acabara de gravar, "Quando o Céu Clarear" (2007). O título de seu primeiro trabalho já nos mostra, sem blackface, o que eu disse anteriormente sobre sua identidade negra. O dom de sambar de Fabiana Cozza pode ser aqui entendido por duas vias de sentido. Fabiana recebeu de orixás, inquices e vodus essa musicalidade africana, como se fosse uma graça, uma dádiva dos deuses. Fabiana recebeu de seu pai, sambista, essa herança cultural, como se fosse a continuação de uma linhagem ancestral. Fabiana não poderia deixar de ser o que é: talentosa em cantar sambas.

Por todo cd, a cantora desfila leve e segura, como estivesse numa passarela ou roda de samba. A começar por O samba é meu dom (Walter das Neves e Paulo César Pinheiro), uma homenagem aos grandes mestres do samba (Mario Reis, Jamelão, Sinhô e Donga, por exemplo) no melhor estilo partido-alto, passando por Lavandêra (Rui Morais e Silva), com arranjos de samba-de-roda, Luzes (Josias Damasceno e Mário Mamana) e Verniz (Sérgio Santos e Paulo César Pinheiro), ambas com forte acento samba-canção, chegando a Acima de tudo mulher (Washington), samba-enredo da Camisa Verde e Branco de 1979, que Fabiana canta com seu pai, Oswaldo dos Santos, ex-puxador da escola de samba paulista.

O projeto gráfico simples acompanha o desenho sonoro que a cantora traçou para sua estréia: elementar e sutil, mas exuberante pela qualidade vocal e artística. A foto de capa do encarte traz uma Fabiana envolta por guias, colares e pulseiras coloridas. Protegida de corpo e alma para uma caminhada que, como já era sabido, não ficaria apenas neste trabalho.

Quando o céu clareou, ela brilhou de novo no cenário musical brasileiro. E muito mais protegida. Em seu segundo cd, tem Iemanjá, Nanã, Ogum, Oxum, Xangô e Ossaim. Pra que melhor? Sobre "Quando o Céu Clarear", comento brevemente em outro post. Até lá.

sexta-feira, 9 de maio de 2008

Brincadeira de Criança - conto

uma história sobre o amor de crianças


Fez sol naquela manhã de domingo. Acordei cedo para brincar com meus amigos na praça: era tempo de gude. Durante a semana, minha mãe não permitia que eu saísse, tinha de estudar para recuperar as boas notas das primeiras unidades. Só pensa em gude, o Dinho, não quer saber de mais nada, vive com esse saco cheio de bolinhas pra lá e pra cá, dizia sempre minha mãe. Nem tomei café direito. Do outro lado da rua, Toni já me esperava. E quando se junta com o filho do novo morador, a coisa dana mesmo, completava ela.

Por alguns segundos, esqueci a ansiedade de sair para vê-lo da cortina entreaberta contando suas bolas de gude. Era quem tinha mais variedade de cores e tamanhos. Chegou ao bairro fazia dois meses, e já era bastante conhecido entre os garotos. Seus pais não gostavam de aproximações, mas não impediam que Toni fizesse amizade. Nunca gostei da situação de ser o caçula de quatro irmãos. Além de minha mãe monitorar meus passos, o irmão mais velho também tomava para si os cuidados do pimpolho da casa. Toni tinha mais liberdade. Dinhôôôô, ele me chama. Tão logo apareci na varanda, ele se levantou e saiu correndo. Disputamos o primeiro lugar nessa corrida por ruas e quarteirões até a praça. Ao passarmos pela ponte sobre o riacho, Lando nos pára. Era mais velho do que nós uns cinco anos. Toni e eu tínhamos a mesma idade, dez. Pedágio, disse Lando. Vá pedir pra sua mãe, reagiu meu amigo, que ainda o empurrou para o lado. Eu não conseguia reagir daquela maneira às ameaças de Lando. Quando o via ao longe, pegava outro caminho. Mas com Toni não era assim, ele não tinha medo. Fale pro seu amiguinho que ele é novo no bairro, da próxima vez ponho ele na “cerquinha”, entendeu? Ele só não, vocês dois. Na verdade, eu não tinha medo de Lando, mas da “cerquinha”. Ele se juntava com mais três meninos, conhecidos como Metralhas para obrigar os meninos indefesos a transar com eles. Dois outros colegas meus já caíram nas mãos deles. Até hoje eles são motivo de chacota da turma. Durante um bom tempo, eles não saíram de casa com receio de serem mais uma vez abusados por Lando e Os Metralhas.

Quando eu e Toni completamos dezoito anos, já havíamos namorado muitas meninas, quase as mesmas. É que Toni era mais paquerador e bonito. Embora eu fosse mais alto que ele, o que chamava a atenção nele eram os olhos, uma mistura de verde e castanho claro que encantava as meninas, e a mim também. Depois de namorá-las, me perguntava se não queria também. E fazia todo o envolvimento entre mim e Vanessa, Dália, Fernanda, Gisa, Tereza... As mais belas do bairro. Desde quando o conheci, sempre quis lhe falar que o amava. Pensei no começo que fosse um amor-amigo, mas quando percebi que crescia em mim um outro Dinho, mais consciente de seu estar no mundo, tive a certeza de que desejava Toni. Quantas vezes busquei em atitudes e palavras suas, declarações que eu queria ouvir, como um “Te amo, Dinho”? Eram pistas falsas ou verdadeiras quando assistíamos a um filme no cinema e sua mão tocava de leve a minha perna? Ou quando brincávamos nus de golfinho na praia e ao passar entre minhas pernas tocava também de leve meu pênis?

Tínhamos medo de ousarmos. Até quando, eu não sei. A confirmação de que demoraríamos de resolver isso veio com a notícia de que ele seria pai. Conheceu uma garota numa festa e na mesma noite transaram, isso foi o suficiente para sua vida mudar completamente. Se eu fosse para festa, para a qual ele me convidou com insistência, talvez o impedisse de beber muito e fazer besteiras. Durante os nove meses em que esperava o filho, Toni se afastou de mim. Vergonha? Arrependimento? Parece que a aversão que ele tinha por Paula no começo, transformou-se em amor quando o filho nasceu. Mudou-se para outro bairro com os pais. De meu quarto, de onde eu sempre o observava sentado na calçada, me despedi dele. Quando fechou o portão, olhou por alguns segundos para meu quarto, talvez buscando uma lágrima minha de despedida. Será que ele sabia que o admirava escondido, de longe? A cortina não deixou que ele visse. Meu consolo foi relembrar os momentos em que passamos juntos, representados pelos objetos que marcaram nossa amizade. Abri um baú, onde guardava nossas relíquias. Foi ele mesmo quem sugeriu a preservação de nossa amizade em forma de um museu pessoal. Eu era o guardião, tinha a chave. Bolas de gude, pipas, estilingues, bonecos, figurinhas, gibis, piões, rodinhas de rolimã e algumas cartinhas que eu escrevi para ele, mas que não chegaram às suas mãos.

Criei também vínculos sentimentais com uma mulher, minha colega de faculdade. Diferentemente de Toni, planejamos ter um filho, mas só depois de casarmos. Procurei meu amigo para ser padrinho de meu filho, mas não o encontrei. Voltei ao bairro onde moramos, eu me mudei um ano depois, mas não obtive informações sobre ele. Quando Toni saiu, não deixou rastro. Minha mãe ficou muito triste por mim, dizia ela que isso não era amizade. Como é que desde pequeno andam juntos e depois sai assim e não diz pra onde vai? Vocês brigaram, meu filho? Eu não respondia, porque não tinha respostas a dar, talvez tivesse, mas ela não seria capaz de entender, nem o próprio Toni. Quando via meu filho brincar com seus colegas, me lembrava dos momentos em que passava ao lado de Toni. Mas as brincadeiras agora eram outras: videogame, surf, computador, shopping... Certa vez, tentei ensiná-lo a rodar o pião, mas não rendeu. Qualé, pai, isso é das antigas. Ainda mais quando virei avô. É pai, tô com a mina grávida aí, e quero uma força... Uma força vezes dois, porque vieram gêmeos.

Encontro de economistas em São Paulo. Lá pelas tantas, durante uma palestra chatérrima sobre debêntures e títulos públicos, saí do auditório para tomar um uísque no bar do hotel. A meu lado, conversando animadamente em um grupo de colegas, estava Toni. Se ele fingiu que não me viu, fingiu bem. Minha reação também foi essa, mas para não ficar nervoso e perder a concentração, meu coração já batia descompassado, bebi de um gole só a bebida, paguei sem pensar em troco e fugi para Avenida Paulista. Em meio ao passa-passa de gente, perdi o rumo e caí numa sauna gay. Longe de casa, tive mais coragem de ousar uma aventura. Um garoto moreno e bastante malhado foi meu companheiro naquelas horas de prazer. No dia seguinte, última sessão do congresso, foi impossível não me encontrar de novo com Toni. E no lugar mais impróprio: no toalete. Não estava caçando, mas depois de tanto tempo sem vê-lo e de ter guardado um desejo de também pegar em seu pênis, não tão de leve com na brincadeira da praia, tive vontade mesmo de ousar mais uma vez. Vontade que não é coragem. Abraços e sorrisos. Falamos de nossas famílias, carreiras (ele fez administração e eu, comércio exterior). Lembramos pouco, quase nada, de nossa infância e adolescência, uma estratégia que poderia ser melhor explorada, porque as imagens mais bonitas foram aquelas em que compartilhamos afetividades. Pensei: por que não voltamos àquele tempo? Trocamos telefones, endereços, mas não nos contatamos. Joguei seu cartão no baú e fingi que Toni estava perto de mim.

Aos 58 anos, o que se faz? Aposentar-se, cuidar mais da pressão arterial, caminhar todo dia na praia, passear com os netos... Se meu filho não curtiu as brincadeiras de criança, meus netos souberam aproveitar minhas novidades. Adoravam quando eu os pegava para um domingo no parque. Era tempo de pipa, e eu os ensinei a fazer suas próprias “arraias” e “periquitos”. As evoluções no ar eram espetaculares, passávamos horas olhando fixamente para o céu. Depois de alguns treinos, eles já estavam craques. Havia momentos em que me afastava e ficava observando os dois brincando juntos, como se fossem Dinho e Toni.

Lá se vão quase cinqüenta anos... Uma outra coisa que um idoso faz quando se aposenta: lembrar antes que a memória falhe. Lembrar, lembrar, lembrar... Ainda mais quando conta com a ajuda de um outro idoso que se senta a seu lado, num banco debaixo de uma mangueira, e vê também seu neto brincar.

- Será que eles sonham como nós sonhávamos naquele tempo?, pergunta-me Toni.

Sorri com lágrimas nos olhos, e respondi assim, com lágrimas nos olhos.

- Se forem felizes como nós éramos...

- A última vez que nos vimos foi naquele evento em São Paulo, perdi seu telefone... E você?

- Guardei no baú, lá estão nossos sonhos... Lembra-se das gudes coloridas que você me deu como presente de aniversário? Eram as suas preferidas, mesmo assim você me deu, estão todas lá. Uma certa vez meu filho abriu o baú, eu tinha esquecido aberto, e pegou o saco, jogando todas as bolinhas no chão... Fiquei nervoso, até bati nele, mas depois me arrependi, por isso ele nem quis mais saber de se aproximar daqueles brinquedos, mesmo com meu consentimento.

- Adoraria vê-los de novo, disse Toni.

- Antes de mostrar, eu esconderia algumas cartas que escrevi para você.

- Por quê? Que cartas?

Poderia até mostrar as mais singelas, contudo tem uma que não ousaria mesmo em revelar. Aconteceu de uma vez eu acordar de madrugada bastante suado, assustado. Havia sonhado com Toni me lambendo o corpo todo. Estávamos tomando banho juntos na casa dele depois de uma partida de futebol. Ele aproveitou que os pais não estavam em casa e me convidou para descansar e fazer um lanche. No chuveiro, ele me fez carícias, me lavou todo, beijou minha boca com gosto de sabonete e xampu... Foi o sonho mais excitante que eu tive com ele. Escrevi logo o que tinha acontecido para não esquecer, e enquanto eu lembrava do sonho, meu pênis continuava ereto. Na minha imaginação, ele ainda me lambia, e isso me fez gozar sem me masturbar. Foi gostoso.

- Hein, Dinho, por que não mostrar as cartas?

- Me lembro agora que no quintal lá de casa tinha uma mangueira, que em época de fruta-boa ficávamos a tarde toda chupando mangas...

- Olha aquele galho ali, está cheio, disse Toni. Pena que não podemos mais subir e ficarmos lá em cima.

- Pelo menos fizemos isso um dia; aquilo que ainda não fizemos é que devemos concretizar antes que não seja mais possível.

- Você não realizou todos os sonhos ainda?

- Se eu não o encontrasse hoje, talvez esquecesse o que sempre desejei fazer.

- O quê, amigo?

Vi meus netos se entrosando com o neto de Toni. Já tinham abandonado as pipas, agora brincavam de pega-pega pelo gramado do parque. Eles não sabiam, nem saberão, que durante anos entre aqueles dois velhos, um deles sempre amou o outro, e o outro sempre teve medo de aceitar esse amor. Mas agora, maduros e felizes, envolvidos por lembranças que os tornavam mais apaixonados, um beijo apenas, trêmulo, porém intenso, foi o supra-sumo dos sonhos que cada um viveu sozinho.

domingo, 6 de janeiro de 2008

Território Invisível de Salvador - Estádio da Fonte Nova

Projeto original de Diógenes Rebouças para
o estádio. Foto atual: Fonte Nova e Dique do Tororó.


No próximo dia 28 de janeiro, o Estádio Octávio Mangabeira completaria 57 anos de inaugurado. Completaria? Sim, porque o que tudo indica, ele não existe mais. Está lá, velho, mas inutilizado. Aposentou-se, compulsoriamente, pelo Governo do Estado. Está fadado a desaparecer por completo e virar pó. Toneladas de concreto esmigalhado e ferro retorcido.

A arena Fonte Nova foi desprezada por seus principais responsáveis e foi, ela sozinha, como se não existissem culpados, responsabilizada pela maior tragédia em estádios nacionais. A notícia virou manchete em todo canto: sete espectadores, que assistiam ao jogo Bahia e Vila Nova, no dia 25 de novembro de 2007, morreram ao cair pela fenda aberta na arquibancada do anel superior, devido à falta de manutenção e conservação.

Uma obra representativa da arquitetura moderna baiana será implodida pela incapacidade de seus administradores darem um destino mais adequado a ela. Arquitetos e engenheiros contestam a justificativa do governo de que a demolição é a melhor forma de resolver o problema, porque, em outros estádios antigos, na Europa, foram feitas adaptações para olimpíadas e copas mundiais sem que fossem destruídos.

Pode-se dizer que o projeto da Fonte Nova é um dos mais bem feitos em termos paisagísticos e arquitetônicos do Brasil, talvez do mundo. A sua estrutura é de um requinte visual que nenhum outro arquiteto, à época, conseguiu ser tão exitoso.

É que Diógenes Rebouças, criador do estádio, além de fazer o recorte das arquibancadas, aproveitando a depressão natural da Ladeira da Fonte das Pedras, não fechou totalmente a visão dos espectadores para a área externa, de modo que, quem está dentro, pode ver parte do Dique do Tororó e a antiga usina geradora, assim como a fonte luminosa dos orixás, em tempos mais recentes.

Isto é possível, porque o arquiteto fez um portal da altura do anel inferior, com passadiço que liga os lados da abertura e os dois níveis estruturais do estádio: o original, de 1951, e o ampliado, de 1971. Em dia de casa cheia, quem passa à pé ou de carro pelo entorno do Dique vê também os torcedores nas arquibancadas, numa integração, pelo olhar, do homem com a natureza.

Se perdermos este estádio, malgrada a tragédia de que foi palco, perderemos parte da nossa memória cultural soteropolitana pela importância que esta "praça de esportes" tem para a configuração espacial da cidade tanto do ponto vista urbanístico, já que foi a partir da construção do estádio que avenidas, ruas e praças foram planejadas em seu entorno; quanto do lazer e do social, pois é sabido que a Fonte Nova faz parte de um complexo que engloba o Ginásio de Esportes Antonio Balbino, o Balbinho, e as piscinas olímpica e semi-olímpica do Clube Olímpico de Natação, onde muitos atletas baianos começaram suas carreiras.

Confesso que, como morador do Desterro, ao lado do Convento, próximo ao estádio, tenho desejado a transferência de jogos para outro lugar, devido aos constantes engarrafamentos e estacionamentos irregulares em dias de partidas concorridas do Bahia, impossibilitando sair e entrar em casa. Se, em partidas nacionais, o movimento de pessoas é enorme, imaginemos quando for um jogo entre Brasil e Alemanha, por exemplo? Se não houver uma reestruturação nas vias de acesso ao estádio, todo o Centro vai parar. Nem o tão divulgado metrô ajudará, isso se ele de fato existir.

Não sei quantas vezes entrei no estádio, mas me lembro de dois momentos marcantes. O primeiro, foi quando tinha mais ou menos 10 anos. Minha mãe, na época, fazia parte das Testemunhas de Jeová e, como era de praxe, todos os freqüentadores desta igreja se reuniam uma vez por ano no estádio para seu congresso. Fiquei encantado com aquela multidão em volta de um campo verde convidativo, mas que não podíamos pisar. Depois disso, sonhei muitas vezes pisando o gramado, correndo por sua pista de atletismo...

O segundo, foi para assistir a um partida entre Vitória e... Ypiranga, Bahia, não sei bem, mas foi ali que, ao lado de meu pai, comecei a ser torcedor do Leão. Em vez de cânticos evangélicos, ouvia o grito da torcida rubro-negra. Mas, em todo caso, eram uníssonas de fé (em Jeová e no Vitória) as vozes que ecoavam naquelas arquibancadas.

1 SEGUNDO E MEIO

O telefonema de desculpas que você não deu nesta manhã para sua namorada, a noite terminou em desentendimentos. O vizinho que lhe mandou um prato de sarapatel pela empregada e que você ainda não devolveu a gentileza com xinxim de bofe, única comida difícil que sabe fazer. A revisão da prova de um aluno que não conseguiu aprovação, mas que merece passar porque é um estudante humilde e trabalha no horário da aula. O cd de Jussara Silveira comprado há três dias e não ouvido, porque o micro system está na oficina e você ainda não retirou. O jardim do terraço que precisa de cuidados, mas a pá e o ancinho estão emprestados a seu irmão, que não o encontrou em casa no horário marcado quando foi devolvê-los. Os e-mails a serem respondidos, principalmente aos ex-colegas de faculdade que planejam um encontro no próximo Natal, depois de 10 anos de formados. As fotos de sua visita à Ilha dos Frades que você não baixou da máquina, porque o cabo usb foi esquecido na pousada quando teve de sair correndo para não perder a escuna. A promoção de passagens da Gol até 23 horas deste domingo, mas a procura foi tanta que o site travou e você não conseguiu nem pesquisar assentos disponíveis para viajar no Carnaval para Florianópolis. O último capítulo não lido de "Um rio chamado tempo, uma casa chamada terra", de Mia Couto, porque depois do almoço, na cadeira reclinável onde você começou a ler, bateu aquele sono e... Naquele 1 segundo e meio, essas imagens afloraram, como uma torrente de rio em tempo de cheia... Naquele 1 segundo e meio, só deu tempo de prender a respiração, mais pelo susto do que por guardar o último ar de vida nos pulmões, no coração... Naquele 1 segundo e meio, enquanto descia aos infernos da dor, numa trajetória sem volta, viu ainda mãos puxando fios invisíveis que não suportavam mais seu corpo magro, mas pesado pelas leis imponderáveis da Física... Naquele 1 segundo e meio, entre a consciência, semi-consciência e apagão, pôde entender porque as folhas, e não os homens, caem dos galhos quando decididamente têm de cair, mas levemente, aproveitando o que o vento tem a lhes oferecer de destino e pouso tranqüilo... Naquele 1 segundo e meio de queda livre pelo buraco da arquibancada da Fonte Nova, você teve dúvidas se estava mesmo vivo. Sete pessoas, mortas a seu lado, não podem lhe responder.


Fotos: Marielson Carvalho