domingo, 30 de dezembro de 2007

Quem foi o puto que matou Benazir Bhutto?

"não aponte o dedo/ para Benazir Butho/ seu puto/ ela está de luto/ pela morte do pai (...)// esse dedo em riste/ esse medo triste/ é você// Benazir resiste/ o olho que existe/ é o que vê" - Chico César

Chico César, em Aos vivos, primeiro trabalho deste antenadíssimo e criativo compositor paraibano, gravou uma canção que, na época, em 1995, já me chamava atenção para a mulher que dava título à letra. "Benazir" fala da ex-primeira-ministra paquistanesa, Benazir Bhutto, eleita democraticamente, mas destituída duas vezes do poder por presidentes golpistas, que acusavam-na de corrupção e nepotismo.

O fato de ela ter sido a primeira mulher a comandar um Estado islâmico, onde é comum as mulheres serem alijadas de postos de comando político e governamental, já a havia transformado uma personalidade representativa no mundo inteiro pela forma não-autoritária e pacífica como ascendia a um dos cargos mais importantes de seu país.

Após a execução por enforcamento de seu pai, ex-primeiro-ministro e presidente do maior partido do Paquistão, Benazir, aos 35 anos, tornou-se, pela primeira vez, premiê entre 1988 e 1990. E na segunda, entre 1993 e 1996.

Desde 1999, exilou-se voluntariamente em Londres e Dubai (Emirados Árabes) por conta de temores de ser executada e de ser julgada por inúmeros processos de improbidade administrativa. Em outubro deste ano, foi anistiada pelo presidente atual, o generalíssimo Pervez Musharraf, seu principal opositor, que autorizou o encerramento dos processos.

Tão logo retornou ao país, sofreu uma tentativa de assassinato, mas nem por isso desistiu de concorrer em eleições próximas para um possível terceiro mandato, mesmo em um ambiente político tenso e perigoso.

Mulher inteligente, elegante e culta, Benazir estudou Ciências Políticas em Harvard e Oxford. Ela fazia parte de uma mudança paulatina de valores surgida depois da Segunda Guerra Mundial, quando muitos governantes de países árabes almejavam entrar na comunidade internacional, mas que para tanto, era necessário modernizar-se, ou seja, adotar um modo de vida europeu, no qual, as mulheres passaram a ter papel emblemático na estrutura sócio-política dos novos estados.

Em aparições públicas, mesmo fora de seu país, Benazir não deixava de usar o véu que a identificava com sua tradição cultural e religiosa. Essa atitude afirmativa de identidade a tornava mais corajosa e independente, na medida em que assumia o encobrimento de sua cabeça menos por imposição e mais por escolha própria, assim como foi o seu casamento que, mesmo tendo sido um arranjo entre famílias, não se concretizaria sem a sua vontade. Talvez por ela ser a única herdeira do espólio político do pai, tenha lhe conferido esta abertura. Isso sem dúvida era uma afronta aos fundamentalistas talibãs, principais suspeitos de sua morte, justamente por serem contrários, principalmente, à abertura do país a alianças com outras nações, consideradas inimigas do Islã, como os Estados Unidos e a Inglaterra.

Paradoxalmente, são esses mesmos radicais ligados a al-Qaeda que garantem a sobrevivência política de Pervet, que por sua vez é apoiado pelos Estados Unidos. Notícias mais recentes dão conta de que os fundamentalistas de Bin Laden negam qualquer envolvimento com o atentado. Dizem que não matam mulheres (sic).

Partidários de Benazir afirmam que o governo tenta a todo instante justificar de que modo a ex-premiê morreu, em vez de descobrir quem foi o mentor do atentado, o que tem gerado manifestações e confrontos violentos em todo Paquistão.

Quem foi o puto que matou Benazir Bhutto? A motivação do crime sem dúvida foi política. Benazir era favorita para se tornar mais uma vez chefe de governo em eleições menos sujas e manipuladas, como a que confirmou mais uma vez na presidência o ditador Musharraf.

O "dedo (ou a arma) em riste" para Benazir foi de medo, de intolerância, de covardia. Mas até onde foi possível, Benazir resistiu. E o olho que viu seu assassinato, verá também a punição dos culpados. Eles existem, o olho e os culpados.

domingo, 16 de dezembro de 2007

Território Invisível de Salvador - Prédio de A TARDE, Praça Castro Alves

Depois de três meses sem postar uma linha sequer, reinicio minhas atividades blogueiras. Criei agora uma seção especial: "Território Invisível de Salvador". Esta idéia surgiu quando trabalhei com meus alunos o espaço simbólico da cidade na literatura, especialmente em autores baianos ou radicados de diversas gerações. É o que fez Italo Calvino ao recriar o "Livro das Maravilhas" de Marco Polo no seu fantástico fabulário "As cidades invisíveis".

O meu "mapa imaginário" contempla uma geografia de Salvador que, embora seja visível, é pessoal e intransferível, pois descreve e narra uma cidade sob meus olhos de criança, adolescente e adulto. Prédios, praças, ruas, lugares desta terra tão dessemelhante marcados na minha memória visual e afetiva, invisíveis aos outros.

Cada percurso literário é composto por uma nota biográfico-informativa e por uma outra narrativo-ficcional sobre este "território". O primeiro é sobre o prédio da sede antiga do jornal A Tarde.

Espero que gostem deste meu exercício.

Foto: Marielson Carvalho

O prédio da antiga sede do jornal A Tarde, na Praça Castro Alves, atualmente sendo reformado para instalar um hotel de luxo, é uma das construções que mais marcam minha memória visual e afetiva como soteropolitano. Quando minha mãe comprava roupas na Rua Chile, especialmente na Sloper, passávamos pela calçada do prédio. Nesta época, início da década de 80, a redação já tinha sido transferida para sua nova sede no Caminho das Árvores, mas na porta principal do prédio ainda rebrilhava, à luz do sol das tardes quentes de Salvador, o nome do jornal, em letreiro de metal dourado.

Nunca entrei por este pórtico, que sempre me pareceu altíssimo, mesmo depois de adulto, quando as proporções das coisas tomam seu volume (quase) real. No máximo, subi alguns degraus até sua calçada, de onde já se pode ver, com certa altura privilegiada, a praça em frente, a baía e a ilha. Quão deve ser deslumbrante do último andar!

Se de fato o prédio for reaberto e nele funcionar um restaurante na cobertura, serei um freqüentador assíduo. Um café com amigos, contemplando o pôr-do-sol, será um dos meus "dolce far niente" preferidos. Resta saber, quanto custará este programa.

Soube que o prédio foi vendido por R$ 30 milhões a Nizan Guanaes há algum tempo, que por sua vez deve ter vendido ao grupo hoteleiro ou mesmo, o próprio publicitário estar explorando este filão, já que é mais do que anunciado seu interesse em investir no setor de entretenimento local.

No andar térreo, do lado da Rua Ruy Barbosa, ficava o Cine Tamoio. Nele assisti a vários filmes, mas especialmente, a dois: ET e Passagem para Índia. Assim como o prédio, a sala de cinema se transformou em outra coisa. Virou igreja evangélica. Com a reforma do antigo Cine Glauber Rocha, que passará a ser Multiplex Unibanco, espero que essa região da Cidade Alta volte a ser um dos centros da cena cultural soteropolitana.

ROSARIUM

Ao atravessar o saguão, em direção ao elevador aberto, Rosário foi chamada por um homem vestido de terno de linho branco. Ele tirou o chapéu e ajoelhou-se na entrada do prédio. O ascensorista apertava a campanhia, informando que fecharia as portas. Ela parou, estava indecisa. Se entrasse, subiria ao terceiro andar, onde trabalhava, na redação do jornal, Carlos, seu noivo. Esperava há dez anos casar-se com ele, mas o jornalista, envolvido com política, esquecera que a vida tinha outros sabores, como o de beijar a noiva com gosto de pastilha de hortelã no escurinho do Cine Tamoio, ali mesmo no subsolo de A Tarde. Era só descer, virar a esquina e pronto. Mas isto nunca aconteceu. João, naquela sexta-feira, havia prometido levá-la para ver “Casablanca” se dissesse que terminaria o noivado e ficasse com ele. O sol da tarde entrava fulgurante pela arcada e projetava no chão de mármore bege a sombra de João ajoelhado. O elevador subiu. Ela ainda apertou o botão, mas já estava no primeiro andar. João a pediu para não ir e tirou do bolso interno do paletó uma rosa vermelha e lhe ofereceu. Esta seria a segunda que ganharia de João. Antes, foi presenteada quando se conheceram numa feira de flores no Passeio Público. Estava tristonha por ter brigado com o noivo. João a acolheu, e a colheu, no jardim da desilusão. Regou Rosário com cuidado. Semeou-a. Agora era a hora do arranjo, da fita, do cartãozinho. O enlace. Ela aceitou mais uma vez, sob olhares perplexos dos colegas de Carlos, que neste momento, na sala dos Simões, aceitava coordenar a cobertura da campanha ao governo da Bahia daquele ano. João e Rosário assistiram à “Casablanca”. Carlos foi obrigado a assistir, pois um dos elegíveis ao Palácio disse ser um dos melhores lançamentos do ano, além de sua candidatura, é claro.