domingo, 30 de dezembro de 2007

Quem foi o puto que matou Benazir Bhutto?

"não aponte o dedo/ para Benazir Butho/ seu puto/ ela está de luto/ pela morte do pai (...)// esse dedo em riste/ esse medo triste/ é você// Benazir resiste/ o olho que existe/ é o que vê" - Chico César

Chico César, em Aos vivos, primeiro trabalho deste antenadíssimo e criativo compositor paraibano, gravou uma canção que, na época, em 1995, já me chamava atenção para a mulher que dava título à letra. "Benazir" fala da ex-primeira-ministra paquistanesa, Benazir Bhutto, eleita democraticamente, mas destituída duas vezes do poder por presidentes golpistas, que acusavam-na de corrupção e nepotismo.

O fato de ela ter sido a primeira mulher a comandar um Estado islâmico, onde é comum as mulheres serem alijadas de postos de comando político e governamental, já a havia transformado uma personalidade representativa no mundo inteiro pela forma não-autoritária e pacífica como ascendia a um dos cargos mais importantes de seu país.

Após a execução por enforcamento de seu pai, ex-primeiro-ministro e presidente do maior partido do Paquistão, Benazir, aos 35 anos, tornou-se, pela primeira vez, premiê entre 1988 e 1990. E na segunda, entre 1993 e 1996.

Desde 1999, exilou-se voluntariamente em Londres e Dubai (Emirados Árabes) por conta de temores de ser executada e de ser julgada por inúmeros processos de improbidade administrativa. Em outubro deste ano, foi anistiada pelo presidente atual, o generalíssimo Pervez Musharraf, seu principal opositor, que autorizou o encerramento dos processos.

Tão logo retornou ao país, sofreu uma tentativa de assassinato, mas nem por isso desistiu de concorrer em eleições próximas para um possível terceiro mandato, mesmo em um ambiente político tenso e perigoso.

Mulher inteligente, elegante e culta, Benazir estudou Ciências Políticas em Harvard e Oxford. Ela fazia parte de uma mudança paulatina de valores surgida depois da Segunda Guerra Mundial, quando muitos governantes de países árabes almejavam entrar na comunidade internacional, mas que para tanto, era necessário modernizar-se, ou seja, adotar um modo de vida europeu, no qual, as mulheres passaram a ter papel emblemático na estrutura sócio-política dos novos estados.

Em aparições públicas, mesmo fora de seu país, Benazir não deixava de usar o véu que a identificava com sua tradição cultural e religiosa. Essa atitude afirmativa de identidade a tornava mais corajosa e independente, na medida em que assumia o encobrimento de sua cabeça menos por imposição e mais por escolha própria, assim como foi o seu casamento que, mesmo tendo sido um arranjo entre famílias, não se concretizaria sem a sua vontade. Talvez por ela ser a única herdeira do espólio político do pai, tenha lhe conferido esta abertura. Isso sem dúvida era uma afronta aos fundamentalistas talibãs, principais suspeitos de sua morte, justamente por serem contrários, principalmente, à abertura do país a alianças com outras nações, consideradas inimigas do Islã, como os Estados Unidos e a Inglaterra.

Paradoxalmente, são esses mesmos radicais ligados a al-Qaeda que garantem a sobrevivência política de Pervet, que por sua vez é apoiado pelos Estados Unidos. Notícias mais recentes dão conta de que os fundamentalistas de Bin Laden negam qualquer envolvimento com o atentado. Dizem que não matam mulheres (sic).

Partidários de Benazir afirmam que o governo tenta a todo instante justificar de que modo a ex-premiê morreu, em vez de descobrir quem foi o mentor do atentado, o que tem gerado manifestações e confrontos violentos em todo Paquistão.

Quem foi o puto que matou Benazir Bhutto? A motivação do crime sem dúvida foi política. Benazir era favorita para se tornar mais uma vez chefe de governo em eleições menos sujas e manipuladas, como a que confirmou mais uma vez na presidência o ditador Musharraf.

O "dedo (ou a arma) em riste" para Benazir foi de medo, de intolerância, de covardia. Mas até onde foi possível, Benazir resistiu. E o olho que viu seu assassinato, verá também a punição dos culpados. Eles existem, o olho e os culpados.

domingo, 16 de dezembro de 2007

Território Invisível de Salvador - Prédio de A TARDE, Praça Castro Alves

Depois de três meses sem postar uma linha sequer, reinicio minhas atividades blogueiras. Criei agora uma seção especial: "Território Invisível de Salvador". Esta idéia surgiu quando trabalhei com meus alunos o espaço simbólico da cidade na literatura, especialmente em autores baianos ou radicados de diversas gerações. É o que fez Italo Calvino ao recriar o "Livro das Maravilhas" de Marco Polo no seu fantástico fabulário "As cidades invisíveis".

O meu "mapa imaginário" contempla uma geografia de Salvador que, embora seja visível, é pessoal e intransferível, pois descreve e narra uma cidade sob meus olhos de criança, adolescente e adulto. Prédios, praças, ruas, lugares desta terra tão dessemelhante marcados na minha memória visual e afetiva, invisíveis aos outros.

Cada percurso literário é composto por uma nota biográfico-informativa e por uma outra narrativo-ficcional sobre este "território". O primeiro é sobre o prédio da sede antiga do jornal A Tarde.

Espero que gostem deste meu exercício.

Foto: Marielson Carvalho

O prédio da antiga sede do jornal A Tarde, na Praça Castro Alves, atualmente sendo reformado para instalar um hotel de luxo, é uma das construções que mais marcam minha memória visual e afetiva como soteropolitano. Quando minha mãe comprava roupas na Rua Chile, especialmente na Sloper, passávamos pela calçada do prédio. Nesta época, início da década de 80, a redação já tinha sido transferida para sua nova sede no Caminho das Árvores, mas na porta principal do prédio ainda rebrilhava, à luz do sol das tardes quentes de Salvador, o nome do jornal, em letreiro de metal dourado.

Nunca entrei por este pórtico, que sempre me pareceu altíssimo, mesmo depois de adulto, quando as proporções das coisas tomam seu volume (quase) real. No máximo, subi alguns degraus até sua calçada, de onde já se pode ver, com certa altura privilegiada, a praça em frente, a baía e a ilha. Quão deve ser deslumbrante do último andar!

Se de fato o prédio for reaberto e nele funcionar um restaurante na cobertura, serei um freqüentador assíduo. Um café com amigos, contemplando o pôr-do-sol, será um dos meus "dolce far niente" preferidos. Resta saber, quanto custará este programa.

Soube que o prédio foi vendido por R$ 30 milhões a Nizan Guanaes há algum tempo, que por sua vez deve ter vendido ao grupo hoteleiro ou mesmo, o próprio publicitário estar explorando este filão, já que é mais do que anunciado seu interesse em investir no setor de entretenimento local.

No andar térreo, do lado da Rua Ruy Barbosa, ficava o Cine Tamoio. Nele assisti a vários filmes, mas especialmente, a dois: ET e Passagem para Índia. Assim como o prédio, a sala de cinema se transformou em outra coisa. Virou igreja evangélica. Com a reforma do antigo Cine Glauber Rocha, que passará a ser Multiplex Unibanco, espero que essa região da Cidade Alta volte a ser um dos centros da cena cultural soteropolitana.

ROSARIUM

Ao atravessar o saguão, em direção ao elevador aberto, Rosário foi chamada por um homem vestido de terno de linho branco. Ele tirou o chapéu e ajoelhou-se na entrada do prédio. O ascensorista apertava a campanhia, informando que fecharia as portas. Ela parou, estava indecisa. Se entrasse, subiria ao terceiro andar, onde trabalhava, na redação do jornal, Carlos, seu noivo. Esperava há dez anos casar-se com ele, mas o jornalista, envolvido com política, esquecera que a vida tinha outros sabores, como o de beijar a noiva com gosto de pastilha de hortelã no escurinho do Cine Tamoio, ali mesmo no subsolo de A Tarde. Era só descer, virar a esquina e pronto. Mas isto nunca aconteceu. João, naquela sexta-feira, havia prometido levá-la para ver “Casablanca” se dissesse que terminaria o noivado e ficasse com ele. O sol da tarde entrava fulgurante pela arcada e projetava no chão de mármore bege a sombra de João ajoelhado. O elevador subiu. Ela ainda apertou o botão, mas já estava no primeiro andar. João a pediu para não ir e tirou do bolso interno do paletó uma rosa vermelha e lhe ofereceu. Esta seria a segunda que ganharia de João. Antes, foi presenteada quando se conheceram numa feira de flores no Passeio Público. Estava tristonha por ter brigado com o noivo. João a acolheu, e a colheu, no jardim da desilusão. Regou Rosário com cuidado. Semeou-a. Agora era a hora do arranjo, da fita, do cartãozinho. O enlace. Ela aceitou mais uma vez, sob olhares perplexos dos colegas de Carlos, que neste momento, na sala dos Simões, aceitava coordenar a cobertura da campanha ao governo da Bahia daquele ano. João e Rosário assistiram à “Casablanca”. Carlos foi obrigado a assistir, pois um dos elegíveis ao Palácio disse ser um dos melhores lançamentos do ano, além de sua candidatura, é claro.

domingo, 2 de setembro de 2007

Cansar: verbo transitivo direto, intransitivo e pronominal...



Ufa! Três regências, três opções de construir uma oração, três maneiras de expressar uma ação de fastio, de enfraquecimento, de escassez ou de esmero.

A palavra, segundo o dicionário Houaiss, entrou na língua portuguesa no século XIII e tem origem na palavra latina "campsáre", da linguagem náutica (rodear, andar à roda, dobrar um cabo, uma ponta no mar).

Nas últimas semanas, esse verbo na primeira pessoa do singular do pretérito perfeito do indicativo tem sido o nome fantasia do Movimento Cívico pelo Direito dos Brasileiros. Criado com o objetivo de pressionar os representantes do Estado a atitudes que visem à harmonia, à segurança e a paz social, o movimento, capitaneado pela OAB-SP e patrocinado por empresários, já dá sinais de cansaço.

O "Cansei" não esconde, mesmo com toda a maquiagem publicitária que se tem feito, uma intencionalidade anti-Lula, elitista e partidária.

A começar por uma das garotas-propagandas (nem tão garotinha assim) do movimento, Regina Duarte, que declarou no programa de José Serra, que tinha medo de que Lula vencesse as eleições de 2002. A começar por João Dória Jr. , um dos mais entusiastas defensores do elitismo social e econômico do País e que apoiou Geraldo Alkmin. A começar por Paulo Zottolo, presidente da Philips, que fez uma declaração preconceituosa sobre o Piauí ("se o Piauí deixar de existir ninguém vai ficar chateado"), Estado governado pelo PT (coincidência?). A começar... Vamos terminar por aqui.

O ato público organizado pelo movimento em São Paulo, na praça da Sé, me fez lembrar de uma outra manifestação no mesmo local, esta bem mais popular. No chão da praça do histórico comício das "Diretas Já", que reuniu, em 1984, 300 mil pessoas, o "Cansei" conseguiu apenas 5 mil. Pouco para o estardalhaço midiático promovido.

Se a intenção foi lembrar o significado político das "Diretas Já", que de fato mobilizou o espírito cívico dos brasileiros, porque estávamos todos cansados da ditadura, da tortura e da censura, não logrou êxito.

A mobilização do "Cansei" teve mais acolhida em grupos e núcleos da classe média, média-alta, alta, altíssima, que enviaram seus soldados mais aguerridos. A patuléia, se foi convidada, não entendia muito bem a motivação daquele desfile de celebridades no palco, ao contrário, aproveitou que passava para o trabalho ou à procura de trabalho para ver o espetáculo de caras e bocas do show business nacional.

O que quer mais Ivete Sangalo, com sua cobertura no metro quadrado mais caro de Salvador? E Hebe Camargo, com seu salário milionário e participação também milionária de merchadising no SBT? E Ana Maria Braga, com sua lancha nababesca e suas fazendas de criação de gado?

Jesus Sangalo, irmão de Ivete, foi quem deu a idéia de criar o movimento e arregimentou uma tropa de notáveis para levantar a bandeira com ele. O interessante é que ele foi buscar na elite paulista esse apoio, a que mais esperneia por ter que carregar nas costas o Brasil e, especialmente, o Nordeste, a "chaga sócio-econômica" do País.

Esse comportamento é verificável na fala de Patrícia Rollo, socialite, ex-Mansur, dono das extintas Mesbla e Mappin, que mesmo sem o glamour de outrora, não dá o braço a torcer e, sem elegância nenhuma (ela é autora de um livro de boas maneiras), desce o pau do preconceito nos baianos.

Em entrevista à Carta Capital, ela chama de acomodados os baianos que recebem o Bolsa Família, pois estes não procuram mais trabalho, ficam só na dependência do governo. Absurdamente, diz que isso se deve ao clima, ao calor, à falta de cultura (sic).

A frase do cartunista Laerte em Caros Amigos deste mês, ao comentar sobre o "Cansei", se encaixa perfeitamente à socialite: "É uma idiotice de madame". Ela, dentre outras, se cansaram de não fazer nada, ou mesmo, de gastar dinheiro na Daslu, e decidiram fazer um passeio pelo centrão de São Paulo, com escolta de seguranças particulares, vestidas de casaco de pele e sufocando os outros com sua soberba.

Um mês depois do ato cívico na praça da Sé, o movimento implodiu, perdeu o fôlego, cansou mesmo. Embora o site oficial insista em dizer que está numa segunda fase, a de elaboração de propostas concretas para o governo, é certo que ele se dissolva cada vez mais e desapareça no sorvedouro.

As principais figuras da campanha sumiram. Ou quando aparecem, causam mais estragos à própria imagem. Foi o caso de Ivete Sangalo que, na tentativa de salvar a pele de Zottolo em um show em Teresina, disse: "Se meu corpo fosse um mapa, meu coração seria o Piauí". Vaia para ela.

Se eu fosse os piauienses, boicotava Ivete em qualquer aparição dela por lá. Assim como fez a Insinuante, a maior rede de eletrodomésticos do Nordeste, que retirou todos os produtos da marca Philips de suas cinco lojas no Estado (acho que mais com receio da população depredar tudo, do que propriamente dar apoio a ela).

Detalhe: não é a primeira vez que Zottolo bole com o Piauí. Segundo a revista Piauí, quando ele era diretor da Nivea, disse que antes dele a marca era como Teresina, "todo mundo sabe que existe mas ninguém sabe onde fica". Um tolo, esse cara.

Outro detalhe: Ivete Sangalo é patrocinada pela Philips. Como foi antes pela Nivea.

Voltando à etimologia do verbo "cansar", vindo de "campasáre", inicialmente significando rodear, andar à roda...

Nadar, nadar e chegar à praia morto de cansaço, depois de tentativas (frustradas) de dobrar uma ponta de mar, como representação mesma do fim deste movimento, não é de todo impossível de se imaginar.

Por outro lado, não há possibilidade de regência verbal para completar a (in)transitividade do cansaço deles. De quê? Você sabe? Não nos cansemos à procura de resposta.

domingo, 5 de agosto de 2007

Caso Richarlyson: a intolerância continua


Com chamada de capa na Folha de S. Paulo deste domingo (5.8), Maurício Murad, doutor em sociologia do esporte, analisa a sentença do juiz Manoel Maximiano Junqueira Filho, que julgou o processo de injúria por meio da mídia, impetrado por Richarlyson, jogador do São Paulo Futebol Clube, contra José Cyrillo Jr., diretor do Palmeiras. O cartola teria exposto publicamente a orientação sexual do jogador. Sobre este episódio eu já comentei aqui no blog.

No despacho, que orienta o arquivamento do processo, o juiz demonstra abertamente seu preconceito aos homossexuais e, em especial, àqueles que jogam futebol. Sugeriu que estes deveriam fazer uma federação à parte da "oficial", por considerar que futebol é um "esporte viril, varonil, não homossexual". E foi mais além na intolerância: "Cada um na sua área, cada macaco em seu galho, cada galo em seu terreno, cada rei em seu baralho". Pasmem! É de uma ignorância sem igual!

Os advogados pediram o afastamento do juiz do processo, que foi acatado pelo Tribunal de Justiça. Ele ainda terá de justificar, com plausibilidade, no Conselho Nacional de Justiça, o porquê de sua decisão.

O que surpreende neste caso é a inconsequência do juiz que, em vez de julgar o mérito em si, se houve ou não injúria, preferiu por julgar o jogador pela sua suposta homossexualidade. E a todos que forem gays. Um discurso homofóbico justamente vindo de uma instituição elementar da democracia que deveria proteger o cidadão contra a discriminação, ou seja, fazer valer seus direitos constitucionais de igualdade perante à lei.

Leia trecho de artigo do sociólogo acima citado:

"As regras do futebol supervisionadas pela International Board são 17. Nenhuma permite a discriminação por opção sexual. Aliás, uma das dimensões mais importantes do futebol, fator que ajuda a explicar sua planetária popularidade, é exatamente esta: qualquer pessoa pode jogar -e jogar bem- futebol, independentemente de classe, cor, tipo físico, opção sexual ou gênero. (...) O filósofo e escritor Camus, que foi goleiro, afirmou que o melhor que havia aprendido sobre ética e bons costumes devia ao futebol. Este, mais do que um esporte, é uma analogia da vida -e, assim, é um grande tema para as ciências humanas, inclusive para o direito. O futebol é uma via de acesso a temas de alto valor, como a inclusão social e a igualdade de oportunidades. Desconhecer isso é grave para uma ocupação tão relevante quanto a de um juiz; conhecer e não observar é muito pior e condenável. Rui Barbosa, expoente de nossa cultura jurídica, era um entusiasta do caráter educacional dos esportes. Considerava-os o lugar do mérito e dos ideais de igualdade. Por isso, os jovens precisavam de esporte, para que, no futuro, melhorassem a sociedade."

E por falar em igualdade, eu queria parabenizar as jogadoras da seleção feminina, que deram lição de competência à seleção masculina. Ganharam o ouro no PAN também por terem vencido nos gramados o preconceito e o machismo.

Os machões tiveram que engolir esta. E a seco.

quarta-feira, 1 de agosto de 2007

Carta ao jornal A Tarde - Raimundo Varela

Foto: Daniel Pinto (www.samuelcelestino.com.br)


Na coluna Tempo Presente (A Tarde), 30 de julho, a jornalista Rita Conrado comentou sobre o projeto "Balanço Geral nos Bairros", do programa de Raimundo Varela na Tv Itapoan.

Por se tratar de um pré-candidato desde as últimas eleições municipais, o apresentador pode estar semeando ainda mais sua popularidade (e intenções de votos para ele) com este projeto que, embora seja de lazer, assistência social e cidadania para moradores humildes de bairros de Salvador, não deixa de ser uma pré-campanha à Prefeitura, mesmo que ele não admita isto.

Como observador atento, enviei uma carta ao jornal para corroborar a opinião da jornalista, que a publicou na edição de hoje, 1° de agosto, na seção "Espaço do Leitor", juntamente com a nota de esclarecimento do diretor da Tv Itapoan. Num dos pontos de sua carta, ele diz desconhecer "políticos e estudiosos de comunicação" que questionam o programa.

É incontestável o carisma de Raimundo Varela, que muitos outros apresentadores tentaram (ou tentam) imitar, mas que são uns arremedos. Sou telespectador eventual de seu programa e admiro a sua longevidade na televisão como um comunicador polêmico, embora, algumas vezes, derrape um pouco nos comentários, chegando até ser preconceituoso e deselegante.

Varela não está desrespeitando a lei eleitoral porque ainda não está registrado como candidato. E nem fala em seu programa que o será. Mas os ataques à administração de João Henrique e a sua filiação e/ou aproximação a partidos que se aninham na Igreja Universal do Reino de Deus, ligada por seus pastores a gestores da Tv Itapoan, já dão mostras de que ele, é sim, o candidato preferido da igreja.

Se não é crime eleitoral (espero que ele se afaste da bancada do Balanço Geral, caso seja efetivada sua candidatura), é falta de ética para quem tanto preza e defende isto em seu programa.

Eis a minha carta:

Varela nos bairros

O projeto Balanço Geral nos Bairros não só causa estranheza e desconfiança em políticos e estudiosos de comunicação, mas em todos os cidadãos conscientes, telespectadores inteligentes e observadores atentos às articulações partidárias e midiáticas de Raimundo Varela e da Tv Itapoan. O programa já é uma escola de fazer candidatos à Prefeitura e à Câmara municipais, leiam-se Fernando José e Guilherme Santos, que estava sumido e agora brotou do nada. Se se cumprir a tradição, teremos outra dobradinha saída da Rua Ferreira Santos para a Praça Municipal. Parodiando o próprio clichê do programa, eu ironizo: ‘Me deixe viu, Varela!’”

Marielson Carvalho, Salvador

domingo, 22 de julho de 2007

PAN, TAM e ACM


O tema do programa Observatório na TV (TVE-Bahia), apresentado por Alberto Dines em 10 de julho último, foi "Jogos Pan-Americanos: relaxar e torcer". Discutiram-se como o evento seria coberto pela imprensa e as justificativas e estratégias das empresas de comunicação em tornar o evento interessante para o público brasileiro durante os 18 dias de realização.

Segundo previsão de Dines, com o começo dos Jogos, a imprensa não saberia tratar em seus noticiários de outra coisa senão de medalhas, recordes e vitórias. O Brasil estaria mergulhado no espetáculo midiático do Pan-Americano, orgulhoso de seus atletas e dos comentários elogiosos dos estrangeiros à grandiosidade e à excelência das instalações recém-construídas para as competições, enquanto a crise no Senado e seus desdobramentos ficariam em segundo plano.

Afinal de contas, vive-se num país de (das) maravilhas e ouvir o Hino Nacional a cada cerimônia de entrega de medalhas é um mantra para se entrar no nirvana patriótico.

A política deu seu jeitinho e também entrou em campo para jogar no Pan. Ironia do destino, aconteceu justamente no Maracanã. Nelson Rodrigues já disse que no Maracanã se vaia até minuto de silêncio. Então... Vaias para Lula, que entrou mudo e saiu caladíssimo. Embora o destaque do dia fosse a abertura, as vaias ocuparam o noticiário, enquanto, por exemplo, as perfomances brilhantes de Chico César com o Quinteto da Paraíba e do Cordel do Fogo Encantado foram esquecidas.

Na semana seguinte, depois de três dias de começado os jogos e de um fim de semana recheado de vitórias do Brasil no Pan e na Copa América, a imprensa volta-se para um episódio que mostrou o quanto ela é capaz de ser eqüitativa e diversificada na cobertura de grandes acontecimentos.

O acidente com o avião da TAM trouxe a política mais uma vez para o campo do Pan e lhe tira a exclusividade midiática. Aliás, antes dos Jogos, o caos aéreo já competia, em termos de preocupação das autoridades, com o caos na segurança pública do Rio. A greve dos controladores de vôo foi abortada, mas a crise continuou pairando no ar. E deu no que deu. Cerca de 192 pessoas mortas.

Em todos os principais meios massivos de informação (jornal, televisão, internet e rádio), a imprensa (independentemente da linha editorial que as empresas tenham adotado para tratar das causas e dos responsáveis pelo acidente) não tratou o público como um autômato, que pensa movido a programação eletrônica ou a estímulos alheios à sua vontade...

E para completar esta semana de notícias de "1ª página", eis que falece ACM. Mais um editorial importante a dividir com o Pan, a atenção do público. Neste caso, um público mais baiano, talvez nordestino, do que do restante do Brasil, especialmente o de São Paulo e Rio de Janeiro, que não tinha muito simpatia pelo senador.

Pela sua participação sempre efetiva e aberta nos regimes ditatorial e democrático dos últimos quarenta anos de história política brasileira, a morte de Antônio Carlos Magalhães atraiu em todos os grandes noticiosos análises, comentários e matérias especiais.

Resumo da ópera brasiliana: a mídia, nesta semana, respeitou a diversidade de interesse por informações, mesmo que tenha sido para nosso bem ou para nosso mal, para nossa alegria ou para nossa tristeza, para nossa satisfação ou para nossa indignação.

E nessa torrente toda de acontecimentos, Renan Calheiros tenta tirar, sem que ninguém dê conta disso, os seus bezerros e vacas do brejo.

segunda-feira, 9 de julho de 2007

Castro Alves


"Eu tenho em mim o borbulhar do gênio". Esta frase dita por um desconhecido, ou mesmo por uma celebridade da vez, poderia soar como presunçosa, arrogante, medíocre até... Mas deixa de ser, quando se sabe que quem a falava com voz sonora e altiva nas tribunas de salões e nos balcões de teatros era Antônio Frederico de Castro Alves.

É certo que a vaidade, tanto intelectual (não aceitava facilmente contestações a seus poemas), quanto estética (cuidadoso na vestimenta e no penteado), era uma de suas características, mas era uma vaidade sem enaltecimentos vãos. Fazia parte de sua performance de poeta romântico.

Tinha certeza de que sua vocação não era para o Direito, mas para a Poesia, e nesta seara, ao lidar com letras menos duras, mas nem por isso destituídas de verdade, afirmaria sua genialidade como pensador de seu tempo.

Reencontrei-me com Castro Alves nesta semana. E penso que sempre temos sua poesia presente, porque seus versos ecoam ainda em nosso imaginário como "espumas flutuantes" que nunca se dissipam dos mares.

Esta revisitação aconteceu pelas mãos de Alberto da Costa e Silva, autor de "Castro Alves: um poeta sempre jovem" (Companhia das Letras, 2007, 198 páginas), que faz um perfil do criador de "O navio negreiro" com variedade de informações sobre a sociedade escravocrata do período e como Castro Alves transitou num ambiente hostil aos negros, do qual nem ele mesmo pôde de todo se desvencilhar, já que, a sua convivência com africanos ou afro-brasileiros escravizados na intimidade do lar, era antagônica politicamente à sua campanha e verve abolicionistas.

Em 24 capítulos (não por acaso a idade com a qual o poeta morreu), Costa e Silva nos mostra as intimidades e a personalidade deste baiano de Curralinho (atual Castro Alves), sem cair no pieguismo com que muitos críticos literários e biógrafos já fizeram.

O autor, especialista em escravidão no Brasil, dá ao texto um tom quase ensaístico, sem esquecer de uma linguagem mais narrativa para descrever as aventuras e desventuras de Cecéu em Salvador, Recife, Rio de Janeiro e São Paulo, especialmente entre os nove anos e cinco meses (1862-1871) em que construiu uma vida literária de reconhecimento popular, num período de público-leitor reduzido, mas ouvinte atento às declamações de poetas em eventos abertos como os que Castro Alves participou.

Algumas curiosidades são reveladas, como a da madrasta de Castro Alves, viúva de um traficante de escravos da Bahia, o português Lopes Guimarães, que ao morrer deixou para ela e os três filhos uma herança que garantiria o mesmo status social e financeiro, inclusive a continuidade por algum tempo dos negócios negreiros do falecido. O palacete da rua Sodré, onde Castro Alves morreu, fazia parte do inventário. Lá, o pai do poeta foi morar com os filhos. A Viúva Lopes, quando o patriarca Alves morreu, teve de assumir as despesas de Castro Alves no curso de Direito em Recife. Ironicamente, o dinheiro que ela ganhara com o tráfico, bancou o poeta abolicionista em suas tertúlias. E o tiro no pé, hein? Acidente ou tentativa de suicídio? Ele havia terminado o namoro, quase casamento, com a atriz lisboeta Eugênia Câmara, para quem escreveu a peça "Gonzaga" e vários poemas líricos, inspirados ora em alegrias, ora em tristezas pelas quais passava o casal. Falou-se muito que Castro Alves amava mais Eugênia, do que o contrário. E que parte das brigas devia-se mais aos ciúmes de Castro Alves, que não gostava de ver Eugênia assediada (e correspondendo ao cortejo) por homens mais maduros e experientes que ele.

Outra versão era que, mesmo apaixonado por ela, sua vaidade era maior, pois não admitia que a mulher tivesse mais aplausos que ele ou que ela não lhe desse sempre louros. Culta, livre e independente (dez anos mais velha), Eugênia batia de frente contra esse egoísmo de Castro Alves. O rompimento era certo. E até a morte, nunca esquecera um só minuto dela.

Com o tiro, ocorrido numa caçada no Brás, redondezas do centro de São Paulo, Castro Alves, que já amargava a dor do coração dilacerado com a separação, teve de suportar a dor física causada tanto pelo ferimento no pé, quanto dos pulmões enfranquecidos pela tuberculose que o acompanhava desde adolescente.

Pé amputado, tuberculose incurável, Castro Alves retornou para Salvador, mas não perdeu o espírito poético e produziu até o fim. É claro que perdeu a vivacidade dos tempos de convivência política e literária em Recife e em São Paulo, mas sua força de vontade resultou na edição de "Espumas flutuantes", quase um ano antes de morrer.

O poeta, que já tinha revelado "O navio negreiro" em 7 de setembro de 1868, preferiu por fechar o ciclo de sua borbulhante genialidade com um livro, cujos poemas, embora carregados de sentimentos mais românticos e amorosos, não descuidavam de tratar de uma questão cara à sua trajetória como homem de poesia contra o Brasil escravista de então: a liberdade.

Adelaide, sua irmã, narra os últimos momentos de Cecéu: "Na véspera de morrer (...), à noite, perguntando as horas e se lhe respondendo: 'É meia noite', suspirou dizendo: 'Será possível, meu Deus, ainda um dia de dor?' (...) Numa das ocasiões (...), angustiada, lhe passava o lenço pela fornte umedecida, ele com voz extinta quase, mas repassada de meiguice, murmurou-lhe: 'Guarda este lenço... com ele enxugaste o suor de minha agonia. (...) Foi sem grandes ânsias nem estertores. Imóvel já, o olhar fito nessa nesga de céu que se descortinava da janela aberta em frente ao leito em que jazia - pouco a pouco a luz desse olhar foi amortecendo, até de todo difundir-se nas sombras da Eternidade... Eram três e meia horas (...) da tarde".

Foi enterrado no dia seguinte, 7 de julho de 1871, no Campo Santo. Três anos depois, seus restos mortais foram recolhidos ao mausoléu do ex-marido de sua madrasta, o traficante de escravos. Mais uma ironia do destino, desta vez menos indireta. Só quase cem anos depois, em 6 de julho de 1971, foram trasladados para o monumento da praça, batizada com seu nome, onde sua imagem com o braço estendido e em perfomance declamatória parece estar sempre bradando, para os quatro cantos da Cidade da Bahia, versos como "a praça é do povo/ como o céu é do condor".
Foto: Marielson Carvalho

sexta-feira, 29 de junho de 2007

Gay no futebol só como torcedor?


Futebol é coisa de macho, certo? Certo para os machistas e homofóbicos. Errado para quem considerar o futebol também como esporte preferido de homossexuais. Eles só podem participar fora do campo, como torcedores nas arquibancadas dos estádios ou na poltrona de suas casas. Como jogador, nem pensar, embora Dadá Maravilha, heterossexual, jogador da Seleção Brasileira na década de 70 revelar que, naquela época, já existiam muitos jogadores gays. Ele inclusive já foi cantado por um colega de equipe que adorava suas pernas.

Se naquele período de repressão sexual o babado já rolava nos vestiários, imagine agora, com abertura e afirmação homossexual em cada esquina, embora ainda com restrições violentíssimas de homofóbicos de plantão, com porrete e revólver na mão.

A polêmica agora eclodiu, veio à tona, quando o diretor administrativo do Palmeiras no programa "Debate Bola" (Record), insinuou que Richarlyson (foto), jogador do São Paulo, seria gay. Quando indagado se na equipe palmeirense havia algum atleta homossexual, respondeu: "O Richarlyson quase foi do Palmeiras".

Segundo matéria no Folha Online, a pergunta teria sido feita, depois que divulgaram em um jornal paulista que a equipe do "Fantástico" estaria negociando uma entrevista exclusiva com um jogador de um grande time de São Paulo, na qual ele revelaria sua orientação homossexual. A Globo desmente.

Desmentidos ou não, atos falhos ou não, ninguém acredita de que não existam jogadores gays no futebol brasileiro. Eles estão, é verdade, ainda no armário (dos centros de treinamento, dos vestiários dos estádios, de suas próprias casas...), mas declarações como a de Dadá acima, já sinalizam que o jogador gay pode ser justamente aquele que fez, no último jogo, a alegria dos torcedores ao chutar a bola, pontuar com um lindo gol e tornar o time vencedor da partida...

Segundo comentários, algumas pessoas que convivem com Richarlyson (fora ou dentro de campo) sabem de sua suposta homossexualidade, mas que não deixam de vê-lo como profissional de futebol, inclusive com títulos de campeão em torneios nacionais e estaduais.

Só achei estranho o advogado do jogador, que pretende processar o cartola do Palmeiras por danos morais e materiais, declarar que conhece "a família dele, sua índole e seu caráter há 11 anos, desde que ele começou a jogar". Quer dizer que ser gay é não ter caráter? Há, inclusive, muitos heterossexuais canalhas.

Por ser um esporte com maioria masculina, assim como nas Forças Armadas, existe uma certa fascinação dos homossexuais por seus praticantes... Quantas vezes, em revistas de nu masculino, jogadores já se despiram para os gays? Vampeta, por exemplo, foi um deles. Questionaram inclusive se ele era realmente heterossexual, só pelo fato de posar para "GMagazine". A justificativa de alguns foi a de que só de imaginar que um outro homem terá sonhos eróticos com o jogador, depois de publicadas as fotos, já é indício de que ele seria gay, pois se satisfaz com esta exposição pública de sua nudez. Houve até dirigentes de times de futebol que proibiram seus jogadores de posarem nus. Do contrário, demissão. "Nem para revistas femininas?", perguntariam os jogadores-modelos. "Não! Os gays são os que mais compram revistas de nu masculino", argumentariam os cartolas desconfiados. A sexualidade humana é tão complexa... Freud já tentou explicar.

Há gays que praticam futebol tanto pela atividade física, desportiva ou profissional, quanto pelo prazer de estar ao lado de outros homens, do contato corporal, pela virilidade. Fora do campo, gostam do esporte tanto como torcedores de times, quanto admiradores da beleza ou porte atlético dos jogadores. Existem homens que não suportam nem ouvir falar em futebol, nem por isso deixam de ser heterossexuais.

Mas há também gays e heterossexuais homofóbicos, que torcem, por exemplo, para o São Paulo Futebol Clube. Como as torcidas organizadas, em sua maioria, são bastante radicais em seu furor gremista e, não raro, serem células de atos criminosos e de vandalismo, eu temo pela segurança de Richarlyson, mesmo que ele nem seja realmente gay...

O machismo é cego e letal.

segunda-feira, 18 de junho de 2007

Da janela se vê o mar - conto

uma história sobre amor de homens

Para Diomedes, in memoriam



Não o amor, mas os arredores é que valem a pena...
Fernando Pessoa

Passava em frente à cafeteria onde costumávamos tomar capuccino com torta de morango. No exato momento em que observava os enfeites luminosos de Natal da entrada, um cliente abriu a porta e pude ver rapidamente a mesa onde eu e Juliano sentávamos. Aquele cantinho era o lugar para atar ou desatar os nós de nossos sentimentos. Lembranças vêm assim, num turbilhão de emoções que nos deslocam. Estava com pressa, tinha de me encontrar com meu novo namorado, mas parei por uns segundos no meio da calçada. Fiquei em suspensão pelos fios da memória... Uma marionete manipulada por Juliano que me levou para dentro do Café Atlântico. Foi ele mesmo quem o descobriu, meio escondido numa rua sem movimento do Centro. O garçom me reconheceu, deu aquele sorriso receptivo e apontou para a mesa como se eu a tivesse reservado. Embora os donos, um casal gay de Porto Alegre, tivessem feito uma reforma no interior, ampliando a entrada, nem a decoração nem o clima acolhedor mudaram. As cadeiras de veludo salmão continuam tão confortáveis quanto antes e as mesas ainda tinham tampo de vidros translúcidos. Podíamos ver nossos pés se cruzarem e se acariciarem debaixo da mesa quando nos reconciliávamos. Ou nervosos e distantes quando não conseguíamos nos entender.

- Não, não espero por ninguém, respondi ao garçom.
- Cadê aquele seu amigo?
- Juliano? Meu ex-namorado?
- É.
- Não o vejo há meses.
- Ah.. Vai pedir torta de morango e capuccino sem chantilly?
- Com chantilly, Juliano era quem não gostava.
- Ah, desculpe, é que depois de tanto tempo... Com licença.

No primeiro salão, onde eu estava, só havia um jovem sentado perto da janela. Sobre a mesa, um envelope de carta pequeno. Ele parecia tenso, ansioso. Roía as unhas e mergulhava diversas vezes o saquinho de chá na caneca vazia. Olhava para fora, esticava o pescoço para ver melhor a rua, passava a mão pelos cabelos compridos. Fazia um estilo grunge. Tinha um jeito meio rebelde, de afronta, devia ter uns dezessete, dezoito anos.

Na parte dos fundos, ficava a área para fumantes, mais cheia. Ninguém conhecido. Decidi ficar apenas quinze minutos, mas todos meus sentidos tinham sido invadidos por fragmentos de um tempo que eu insistia em não mais retomar. Juliano me prende nessa cafeteria, por quê? Precisava de uma tesoura para cortar aqueles fios que me impeliam a comer a torta e a sentir o gosto de sua boca agridoce-morango, era mais gostosa a torta ou sua língua açucarada?

- Mais alguma coisa?, perguntou o garçom.
- Hã?! Não.
Lembrei-me dos momentos em que eu chegava antes de Juliano e ficava na expectativa de vê-lo entrar de sorriso largo, como o do cara que entrou agora... Ele se dirigiu para a mesa do jovem de cabelos compridos. Os lábios cerrados de um não se correspondiam com o brilho do sorriso do outro. Os tais nós precisavam ser atados naquela mesa. Tão logo se sentou, o rapaz do sorriso recebeu a carta. Tentei ouvir o que falavam, mas a voz de Teresa Salgueiro, de Madredeus, desviou minha atenção para um pôr-de-sol deslumbrante em Lisboa, à beira do Tejo. Foi lá que conheci Juliano. Eu estava em pé, na mureta de proteção do cais, e ele sentado na ponte de atracação, poucos metros à minha frente. Com fones no ouvido, distraía-se com uma música. Os óculos escuros impediam que eu visse seus olhos, não sabia se olhava para mim fixamente ou se cochilava, o que era perigoso, porque poderia cair no rio. Depois de alguns minutos, quis conhecê-lo e fui até lá. Toquei em seus ombros largos e musculosos. Ele desligou o cd portátil, tirou os óculos e abriu um sorriso encantador.

- Não é perigoso você sentar aí, pode cochilar e...
- Teria você pra me salvar.
- Salvaria sim, ainda faria respiração boca a boca.
- É a melhor parte do salvamento...

Rimos de nossa própria ousadia. Dois estranhos, que nem seus nomes foram revelados, já se ofereciam sem restrições. Não estávamos ali apenas para ver o fim de tarde, mas procurando também uma companhia para nossa solidão. Fosse para um bate-papo casual fosse para um sexo rápido num motel barato, decidimos ir ao Cais Sodré no momento certo. Ele era estudante de intercâmbio na cidade, eu passava férias em casa de amigos. Nossas afinidades iam além do gosto de ler Pessoa e Quintana, assistir a Almodóvar e Winders, ouvir Madredeus e The Cranberries; elas convergiam para o mesmo prazer de um estar olhando para o outro. Tínhamos encontrado em cada um o que há tempos procurávamos. E já saímos dali apaixonados. Subimos para o Bairro Alto e jantamos num restaurante de onde pudemos observar o Tejo até a Torre de Belém... Toda cidade tem um cheiro, e Lisboa nesse momento exalava um perfume cítrico-amadeirado que me inebriava, ou seria o perfume de Juliano que se espalhava por onde passávamos? Só sei que senti uma vontade de abraçá-lo com força, e o fiz como quem tinha a certeza de que um dia poderia perdê-lo... Lisboa compunha nossa geografia durante os dias em que percorríamos suas ruelas, ladeiras e miradouros, como um casal feliz em lua-de-mel. Em outros momentos, como o da cafeteria, quando era grande o silêncio e eu aguardava o milagre num sonhar acordado, Lisboa se instalava de novo em mim. Embora não nos víssemos mais, nem sabia se ele estava em Salvador, louvava a saudade por alguns minutos, talvez com desejo de reencontrá-lo para ver de novo seu sorriso...

O toque do celular me trouxe para a realidade, era meu namorado que já me esperava na saída do trabalho... O café tinha esfriado, só comi mais um pedaço da torta e pedi a conta ao garçom. Junto com a despesa, veio um bilhete.

- De quem é?
- De um daqueles dois que estavam sentados ali.
- Quem?
- O que parecia com aquele seu amigo.
- Juliano?
- Acho que era ele.

Abri o bilhete e reconheci a caligrafia. Meu Deus! Com que olhos eu estava que não o vi? Por que não falei com ele? Na sala, outras pessoas conversavam; a mesa encostada à janela estava agora ocupada por uma velha, que tomava um suco. Virei a cabeça para procurá-los na sala de fumantes, e nada. No bilhete, a mensagem: O Tejo desaguou nossas lembranças no mar, não sabemos em que praia irão aportar... Juliano.

- Eles já foram há muito tempo?
- Quase uma hora.
- Como, se estou aqui há pouco mais de quinze minutos?
- Não, há mais de meia hora.
- Ah, devo ter perdido a noção do tempo... Foi a primeira vez que você os viu juntos?
- Sim.
- Eles brigaram?
- Houve um pouco de discussão no começo, mas terminaram felizes.
- E a carta?
- Rasgada sobre a mesa, logo depois que saíram joguei no lixo.
Paguei a conta e saí às pressas. O bilhete na mão, amassado e molhado de suor, provava que Juliano estava mais perto de mim do que imaginava. Aquele cara não era o mesmo Juliano, só o sorriso é que parecia, ou era de verdade? Se fosse ele, ainda assim tinha emagrecido, deixou a barba crescer, usava uma boina, roupas diferentes... Por isso não reconheci.

Da mesma forma que começamos o namoro, sem delongas, ele se afastou como se fugisse de algum mal. Confesso que uma das últimas reconciliações, depois de desentendimentos por causa de algumas revelações que eu fiz, o nó não foi totalmente atado, ficou ainda frouxo. Ele disse que visitaria parentes no interior, voltou depois de uma semana e não me ligou. Procurei diversas vezes em sua casa, dei telefonemas, escrevi cartinhas... Nenhuma resposta. Recebia informações desencontradas de que estava com outro amor, seria o jovem de cabelos compridos?, de que passava dias ali e acolá em casa de amigos que eu nunca tinha ouvido falar, de que voltou para Europa...

- Onde você estava?, perguntou com raiva o meu namorado.
- Desculpe, meu bem, é que tive de fazer uma coisa importante.
- Você sempre se atrasa... O que foi dessa vez?
- Coisas minhas.
- Vamos agora fazer o quê? Perdemos a sessão das 18, agora só a das 21.
- O que você sugere?
- Tem uma cafeteria aqui perto que há muito tempo não vou. Vamos dar um tempo lá.
- Que cafeteria?
- Atlântico. Lá você me explica melhor que “coisas minhas” são essas que estava resolvendo.
- Por que não vamos pra minha casa? Assistiremos ao filme amanhã.

Não foi fácil convencê-lo a desistir do cinema e, principalmente da cafeteria. Aquele lugar me transforma, perco o sentido. Ao contrário de Juliano, Gustavo tinha poucas afinidades comigo, era mais nervoso e exigente. Seus ciúmes chegavam a ser mais constrangedores do que os de Juliano. Era grosseiro e intempestivo, mas sincero. Juliano era fingido e escorregadio, mas educado. Fomos para meu apartamento, onde pudemos ficar mais à vontade. Como dizer a ele que eu estava com um amigo, sem ter estado? Seria capaz de me matar se dissesse que foi com meu ex-namorado, de quem não queria ouvir falar. Dizia ele que Juliano não foi homem o suficiente para me assumir, que fugiu envergonhado quando soube que eu era transexual. Para evitar mais frustrações, disse logo a Gustavo quem eu era quando o conheci. “Nunca amei tanto uma mulher”, me falava sempre ao final de um pedido de perdão por causa de um desatino seu. Falaria o mesmo depois de brigar comigo quando explicasse as tais “coisas minhas” que me fizeram atrasar o encontro. E falou mais: “Quero ter um filho com você.”

Não era tão forte quanto Juliano, mas me levou sem nenhum esforço para a cama. Abrimos o vinho que compramos para a ceia de Natal e tomamos entre um beijo demorado e outro, entre um sussurro e outro, entre um riso e outro. Atravessamos a noite bêbados de amor e sexo. Em um momento apenas me lembrei de Juliano. Ele nunca me fez sentir um gozo tão profundo e verdadeiro quanto Gutinho me fez naqueles milésimos de segundos. Eu me rendi completamente a ele. Sim, teremos um filho, falei baixinho no seu ouvido. Você é minha mulher, declarou ele.

Enquanto Gustavo tomava banho, vesti meu roupão e abri a janela da sala. Era madrugada ainda, mas aos poucos a silhueta da ilha de Itaparica aparecia do fundo da baía em meio à névoa. Mais perto de mim, logo em frente, o mar rolava na praia algas, sargaços, espumas, conchas e lembranças...

Talvez ali mesmo eu cavasse um buraco e enterrasse o bilhete de Juliano...

sábado, 16 de junho de 2007

Festa no Reino de Ariano


Hoje, o paraibano (e paraibense, porque ele nasceu na antiga Cidade da Parahyba, atual João Pessoa) Ariano Suassuna faz 80 anos.

Um tento para ele, que ainda está lúcido e em atividade, e um orgulho para nós todos, leitores de suas obras. Ariano é um pop star da literatura brasileira contemporânea. Não precisa ter milhões de livros publicados em inúmeras línguas para ser reconhecido, como muitos se jactam por aí...

Basta apenas ter erudição sincera, envolvente, participativa e festiva, como tem Ariano... Isto está em seus livros e na sua fala, quando faz suas aulas públicas em eventos literários pelo País.

Eu assisti a uma dessas aulas de literatura brasileira em João Pessoa, no Teatro Santa Rosa, quando, em 2002, fazia mestrado na UFPB e morava na cidade. Foram duas horas de passeio por nossas letras nacionais, de Gregório a Euclides da Cunha (este, confessadamente, seu escritor preferido).

Nesta aula, aprendi com Suassuna que, não adianta incentivar a leitura, estimular os outros a gostarem de literatura, se o professor não lê, não conhece aquilo que leciona. (Lembro-me de um verso de Mario Quintana: "Os verdadeiros analfabetos são aqueles que sabem ler e não lêem")

É preciso ter paixão pelos livros. E Ariano dá lições de como ser um apaixonado pela literatura e, por extensão, por sua literatura. No Reino de Ariano, ele é quem rege o tempo e o espaço da ficção, uma realidade possível, que nos encanta pelo engenho e arte com que reinventa para nós.

A microssérie "A Pedra do Reino" (http://quadrante.globo.com/), ora em exibição na Globo, é uma primorosa adaptação da obra monumental de Ariano. Pense no trabalho em adaptar mais de 700 páginas de romance para apenas cinco capítulos de 40 minutos cada!

Li algumas críticas de que Luiz Fernando Carvalho estragou a festa dos 80 anos de Ariano com a microssérie. A linguagem realista-fantástica, com a qual o diretor se afirma na televisão (vide a outra microssérie "Hoje é dia de Maria"), quando se coaduna com a mesma linguagem já presente na obra, a partir da qual ele constrói sua narrativa, como é o caso de Ariano, o resultado pode causar estranhamento, mais do ponto de vista da rejeição, do que da atração.

Sem dúvida, o elenco, o figurino, o cenário, a interpretação, a música, a fotografia... Tudo nesta microssérie está belíssimo, mas penso que se a programação de dias exibidos fosse mais expandida, pelo menos por mais uma semana, a história poderia ser melhor apreendida, sem a "pressa" com que aparentemente se mostra nas falas e nas cenas.

Às vezes, é quase impossível entender alguns diálogos, porque envolvem um sem-número de personagens envolvidos, assim como referências a episódios não mostrados que, para um público de televisão não-leitor de literatura, não-experiente nas artimanhas e idiossincrasias da associação e hibridez das linguagens verbais e visuais, pode ser enfadonho e "sem sentido".

Isso não quer dizer que o público não deve ter contato com outras formas de linguagem televisiva, pois a teledramaturgia brasileira tem seus cacoetes e vícios narrativos que estão exaurindo nossa paciência por ver algo novo.

Toda telenovela apresenta uma estrutura dramática que já é sabida por todos. Se começa diferente, como algo inédito, termina da mesma maneira como as outras. Tudo é previsível. É uma fórmula clássica que, quando rasurada, é possível que as televisões percam audiência e, por conseguinte, dinheiro.

As mini e microsséries são obras fechadas, portanto, têm uma estrutura que difere das telenovelas quanto ao número de capítulos e, geralmente, gravadas antecipadamente e exibidas em datas específicas. As telenovelas podem ser encurtadas ou prolongadas ao sabor dos índices do Ibope.

Sou favorável a exploração de novas formas de narrativas, mesmo que preservando a linha clássica, mas isso não quer dizer que deva ser indecifrável, quase impossível de compreensão. Este público não acostumado a inovações fílmicas na televisão tem que se habituar aos poucos.

Não adianta uma produção espetacular, se o conteúdo da mensagem não atravessa a tela e preenche, complementa, informa ou corresponde às expectativas de quem assiste. Como a maioria dos televisores atuais tem controle remoto, com um dedinho pressionado, muda-se rapidamente de canal.

Em termos de Ariano Suassuna na televisão, "O Auto da Compadecida" e "Uma mulher vestida de Sol" foram duas adaptações elogiadas, o que não exclui, obviamente, "A Pedra do Reino", mas o que faltou foi a medida certa do texto literário no texto visual.

É uma obra autoral de Luiz Fernando Carvalho que, se for readaptada para o cinema, talvez encontre seu espaço ideal de luminescência mágica.

Mas assistamos até o final, que traz desfecho inédito escrito pelo próprio Ariano Suassuna, já que a obra original faz parte de uma trilogia que ainda não foi concluída. Se a intenção foi a de chamar o público para ler o romance, penso que não será fácil. Deixemos que o mestre o faça por si mesmo, ele entende das coisas.

Parabéns, Ariano, por seus 80 arianos.

quinta-feira, 14 de junho de 2007

Carta ao jornal A Tarde - Centro Histórico


E-mail enviado e publicado no jornal A Tarde, de 13 de junho, seção "Espaço do Leitor", sobre a degradação do Centro Histórico.

Abandono do Centro

"É lamentável o que se vê no Centro Histórico, especialmente nas ruas, praças e largos do Pelourinho. A programação cultural gratuita, que outrora animava a população nos espaços abertos do local, como as praças Tereza Batista e Pedro Arcanjo, foi reduzida, dando lugar a eventos fechados, com cobrança exorbitante de ingressos, principalmente em fins-de-semana ou em período de alta estação, quando a cidade recebe turistas dispostos a pagar, até em euro, para assistir aos shows de bandas. Está certa, a jornalista Rita Conrado, em Tempo Presente(11/6/2007), ao denunciar o estado de abandono visível do Centro Histórico."

Marielson Carvalho, professor da Uneb, Salvador - BA

terça-feira, 12 de junho de 2007

Record Nordeste



A Tv Itapoan, a primeira emissora de televisão da Bahia (1960), é também a primeira a ter uma "news room", a maior do Nordeste e a segunda da Record.

Mas antes de falar desta nova fase do Canal 5, quero ativar minhas lembranças desta emissora que, na adolescência, foi meu playground diário, pois estava tanto presente nas gravações de seus programas, quanto assistindo em casa a sua programação.

Na década de 80, depois de chegar da escola, preparava-me para pegar o ônibus Ribeira-Federação (neste tempo, eu morava na Cidade Baixa) e participar dos programas de auditório da Tv Itapoan, especialmente, os musicais. Pelo menos, três vezes por semana, fazia das minhas tardes de folga das atividades escolares em passeio ao auditório da Tv.

Assisti ao vivo, o início da axé-music e do samba-reggae nesses programas, pois eram um dos poucos a abrir as portas para cantores e bandas do novo gênero. Margarete Menezes, Sarajane, Banda Reflexus, Chiclete com Banana (ainda com Missinho), Daniela Mercury (ainda na Companhia Clic), Durval Lélis, Tatau...

Sem contar com as atrações nacionais, como o grupo Dominó, e as internacionais, como Menudo... Este dia foi especial, pois, como não pude assistir ao show na Fonte Nova e no Shopping Itaigara, consegui vê-los de graça, até mais de perto... Só não consegui pegar autógrafo.

É também desta fase, os programas de Mara Maravilha (antes de ser levada para o SBT), "Bozo" (a versão local era bem melhor do que a nacional) e de Tia Arilma, com o "Parquinho" e suas apresentadoras infantis, Patrícia Fofolete e Geysa...

Eu não sei quantas vezes participei de seus concursos de lambadas, quando este ritmo era a sensação do momento, com Beto Barbosa, Kaoma... Ah, meus verdes anos!

Depois foi a vez de "Ao Pé da Fogueira", o maior concurso de quadrilhas juninas do País. Eu participava de uma quadrilha que, todo ano, concorria o primeiro lugar, num período em que as emissoras locais investiam neste tipo de entretenimento televisivo.

A quadrilha que vencia no "Arraiá do Galo (Tv Aratu), "Forró do Sete" (Tv Bandeirantes) e "Ao Pé da Fogueira", estava quase certa de ganhar no "Arraiá da Capitá". E minha quadrilha conseguiu esta façanha.

Acompanho o "Balanço Geral" desde a época de Fernando José (depois eleito prefeito de Salvador) e de Guilherme Santos (depois eleito vereador). Hoje, Raimundo Varela está na bancada. Afora alguns desatinos verbais, faz um bom programa.

O jornalismo da emissora sempre foi uma escola para muitos jornalistas que hoje posam de "globais" de São Lázaro, como José Raimundo, Kátia Guzzo, Casemiro Neto... Seus telejornais sempre foram criativos, embora, houve um tempo, com recursos audiovisuais pouco modernos, em relação às de outras emissoras locais.

Na primeira fase após a aquisição da emissora pela Record, leia-se Igreja Universal do Reino de Deus, a Tv Itapoan perdeu um pouco a variedade de programas musicais e de auditório, inclusive as transmissões das festas populares de Salvador, como Festa de Iemanjá, Carnaval, Lavagem do Bonfim, para um número cada vez maior de horas para os programas evangélicos.

Com a reestruturação em nível nacional, a Record expandiu e atingiu a marca de vice-liderança na audiência do público brasileiro. Na área de jornalismo, a rede começou a investir a partir de São Paulo e Rio de Janeiro, num modelo de programa parecido com o da Globo, inclusive com a contratação de "ex-globais". Tática de guerra que vem dando certo, embora já esteja encontrando um perfil próprio de produção.

A inauguração, na Tv Itapoan, da sala de notícias da Record Nordeste, é uma tentativa de fazer o que a Globo já tinha feito nos anos 70, quando expandiu, além-Jardim Botânico, seus tentáculos de rede, criando a Globo Nordeste em Recife.

É possível que esta estratégia frutifique bem, haja vista, em termos locais, é um abalo na hegemonia da Rede Bahia de Televisão, a maior do Norte e Nordeste, além de ser um bom início para que mais reportagens especiais produzidas aqui sejam assistidas com freqüência nos telejornais da Record.

É mostrar que os jornalistas baianos também sabem fazer televisão nacional. E com sotaque, para não perder a identidade.



quarta-feira, 6 de junho de 2007

NoMinimo ou como não deixar de rir com Tutty Vasques...


A internet é o céu e o inferno, sem passar pelo purgatório, de muitos sítios feitos com engenho e arte, com qualidade e criatividade, com conteúdo crítico e informativo, com responsabilidade e liberdade de expressão...


Esta é a experiência por que está passando o sítio NoMínimo (http://www.nominimo.com.br/). No mesmo mês (junho) em que completa cinco anos no ar, pode não ser mais atualizado e sair do ciberespaço por falta de patrocínio.


É uma pena, porque é um dos melhores canais de informação da rede, com uma plêiade de jornalistas e colaboradores de altíssimo nível intelectual e expressivo.

Tenho meus preferidos, como Villas-Bôas Corrêa, com sua ironia sagaz no trato com os políticos. Admiro-o desde o tempo em que era comentarista, na década de 80, do Jornal da Manchete, aquele telejornal de uma hora de duração e que fazia a diferença ao insuperável Jornal Nacional. (Minha mãe não entendia bem o porquê de eu gostar tanto do telejornal... "É longo demais", dizia ela. Sem contar que impedia de assistir a novela das oito, que hoje é das nove.)


Tem também Tutty Vasques, com suas notinhas satíricas sobre todo mundo, não libera ninguém. É tão viciante lê-las, que assinei para receber todas as vezes que ele atualiza no sítio. E todo dia tem um gracejo. Cheguei até colaborar com ele, ao informar que Fernandinho Beira Mar, quando fez sua temporada prisional em Florianopólis, ficou na superintendência regional da Polícia Federal, localizada na Avenida, creia, Beira-Mar... Não é preciso dizer o quanto ele se sentiu em casa, né? Hehehehehe.


E por último, Sérgio Rodrigues, com suas colunas "A palavra é..." e "Todoprosa". A primeira, tem conteúdo que nem mesmo os lingüístas mais caxias na profissão conseguiria dar conta de tamanha presteza como o jornalista, que comenta e analisa neologismos, coloquialismos, estrangeirismos, lulismos etc, surgidos por aí, na mídia. Já usei vários de seus comentários em aulas de língua portuguesa e redação. Seu livro "What língua is esta?" (Ediouro) é divertidíssimo. Já "Todoprosa", trata de livros e autores, com resenhas e comentários igualmente inteligentes sobre literatura dos mais variados estilos, assuntos, gêneros, eventos, sempre com desenvoltura e inteligência.


Por tudo isso (para mim, estes exemplos já são um bom motivo), é que eu convoco aqueles que gostam de um boa leitura e procuram um sítio (ou porto) seguro em meio à turbulência (e mediocridade) da rede, para acessarem diariamente o sítio e fazerem ultrapassar a marca de 5 milhões de páginas visitadas a fim de sensibilizar os patrocinadores para, no mínimo, pagarem o último balão de oxigênio de NoMinimo.

segunda-feira, 4 de junho de 2007

Domínio Público continua na WEB


Ao ler uma nota da coluna de Cacau Menezes, no "Diário Catarinense" de hoje, jornal diário de Florianópolis, tomei um susto, típico daqueles de pular da cadeira. É exagero? Não.

É que na informação dada pelo jornalista, o Portal Domínio Público (veja link ao lado, na seção do blog "Sítios Que Me Situam na WEB") estaria fadado a ir para a lixeira do ciberespaço, ou seja, seria desativado por falta de acesso!

Loucura, pensei, o Governo retirar um portal de obras literárias e outros tipos de textos (audiovisuais e midiáticos) para download gratuito. Seria um retrocesso que remontaria à Idade da Pedra Lascada.

Já estava preparando um manifesto de repúdio, um abaixo-assinado online para impedir tamanha atrocidade contra o acesso à informação e à leitura, num país tão carente disto.

Mandei um e-mail para o jornalista, mas não esperei ele me responder e fui tirar satisfação com os organizadores do Portal. Foram rápidos na resposta, ei-la na íntegra:

Prezado Marielson,

Agradecemos o contato. Graças a seu interesse e participação, o Portal Domínio Público tem alcançado resultados cada vez melhores.
Informamos que é falsa a notícia veiculada na internet e na mídia em geral sobre a possibilidade de desativação deste Portal, por suposto motivo de falta de acesso. Já foi divulgada uma nota desmentindo essa informação, mas as pessoas, infelizmente, continuam não verificando a informação e repassando os e-mails.

Atenciosamente, Lídia Hubert.

http://dominiomec.blogspot.com/

Imediatamente, encaminhei o e-mail para Cacau Menezes, a fim de que ele faça um mea culpa e procure averiguar melhor as notícias que repassa.

Espero a resposta dele, se não vier, faço aqui minha parte como professor de literatura, divulgando para vocês, colegas, alunos e amigos, que não conhecem este projeto do Governo Federal em prol da leitura livre, sem cadastro e conteúdo exclusivo, no ciberespaço.

Acessem, usem e abusem.

domingo, 3 de junho de 2007

Hugo Chávez


A manipulação de informações acerca da decisão do presidente Hugo Chávez de não renovar a concessão da RCTV, a outrora mais influente rede de televisão da Venezuela, pode ser avaliada por todos aqueles que desconfiam do que vem prontinho à sua casa no horário das 20h15, através do Jornal Nacional, ou mesmo de noticiários de outras redes, ou ainda, de editais e matérias dos grandes jornais, como Folha de S. Paulo.


Eu sou um privilegiado, pois tenho acesso a variados canais massivos de informação, mantenho-me atualizado de tudo e, em especial, sobre este caso da Venezuela, tenho buscado me informar constantemente. Assisti ao vídeo "A revolução não será televisionada" (http://www.youtube.com/watch?v=aQu8ic0WRXo), um documentário com imagens exclusivas da tentativa de golpe de Estado ao governo de Hugo Chávez em 2002 por seus oposicionistas, em conluio com a CIA, leia-se Estados Unidos. O vídeo está dividido em 10 partes, devido ao limite de tempo que o You Tube disponibiliza.


Os produtores do vídeo captaram a tensão antes, durante e depois do golpe e do contra-golpe, mostrando os bastidores e a movimentação dos dois grupos pelo poder. A RCTV e outras redes ocultaram a verdade dos fatos, não transmitindo o contra-ataque dos chavistas pela retomada do Palácio Miraflores, em Caracas.


A maioria da população assistia a filmes e desenhos animados, enquanto tiros e bombas explodiam nas ruas, matando os manifestantes que, não acreditando nas informações divulgadas pelo governo provisório de que Hugo Chávez havia renunciado, buscavam o seu presidente, a esta altura escondido pelos golpistas, depois de retirado do palácio.


A não-renovação do sinal da RCTV não foi um ato peremptório de Hugo Chávez. Lá, a concessão é dada por 20 anos e o da RCTV estava vencendo. A Constituição não foi desrespeitada. O presidente esperou até o último segundo de transmissão da TV para não lhe dar a renovação. Foi légitimo. Desrespeito seria se Chávez fizesse isso, enquanto a licença estivesse vigorando.


Outras ainda, inclusive as que colaboraram com o golpe, estão funcionando e fazendo igualmente oposição ao governo que, ao contrário do que divulgam na imprensa brasileira, não faz censura institucional. Talvez quando precisarem renovar suas licenças, se Chávez ainda estiver no poder, não as terão.


O mais interessante neste quiproquó todo é o fato de o Congresso Nacional brasileiro, cheio de questões mais importante para resolver, ter feito um pedido ao governo venezuelano de revogação de sua decisão.

Que moral tem o Senado, com suas raposas velhas mais do que carcomidas de poder, como José Sarney e ACM que, durante o mandato do primeiro como presidente e do segundo como ministro das Comunicações, distribuíram concessões de rádio e televisão para políticos?


O mesmo pode acontecer no Brasil, com a Globo, SBT, Record, Band saindo do ar e só ouvirmos o chiado ou vermos a tela azul de "sem sinal"... É só Lula acordar com o companheiro Chávez na cabeça (ou literalmente com a boina vermelha dos bolivarianos) para os Marinhos, Abravanéis, Macedos, Saads sentirem o travo amargo que a RCTV está sentindo.


Não digo nada.




Caymmi e Eu


Impossível não se emocionar com a presença plácida e melodiosa de Caymmi. Há sete anos pesquisando sua obra, que resultou em dissertação de mestrado em 2004, nunca tive a oportunidade de estar a seu lado pessoalmente. Por diversas vezes, tentei um encontro no Rio ou em Pequeri, em Minas Gerais, mas nunca acertamos os horários. Só por telefone podíamos conversar... Horas que, aos poucos, foram diminuindo para minutos, até chegar a segundos. Ultimamente seu fôlego estava curto e sua voz sumindo. Minha interlocutora passou a ser Stela Caymmi, sua neta, também pesquisadora, que me dizia as novidades do Vovô.

Para mim, a vinda de Caymmi a Salvador depois de onze anos, era uma forma de me encontrar e entregar-lhe meu trabalho de pós-graduação e, especialmente, pedir-lhe a benção, como faço com minha avó Tarcila, de idade quase igual a dele. E, quando o vi chegar ao Teatro Castro Alves, para a entrega do Prêmio Jorge Amado pelo conjunto de sua obra, eu não me contive de emoção, pois estava diante de uma lenda viva da música popular brasileira, um dos remanescentes da geração de ouro do rádio nacional, companheiro de outros tantos bambas e rainhas da música, como Assis Valente, Ary Barroso, Pixinguinha, Dalva de Oliveira e Carmen Miranda. Mais: estava frente a frente daquele que me acompanhou, mesmo que simbolicamente com suas gravações, nas noites de completa solidão em João Pessoa e em Florianópolis, quando escrevia minha dissertação.

Alguns dizem que este prêmio representa as pazes entre ACM e ele, já que, como se sabe, durante muito tempo, fagulhas de discórdia chisparam da relação entre os dois. Quem conhece Caymmi tem certeza de que ele é de paz, não é vaidoso, nem bajulador, daí que esse mau humor foi criado por ACM porque ele não admitia que Caymmi não beijasse a sua mão ou não batesse à porta do palácio para pedir-lhe algum favor, como se isso fosse uma obrigação dos artistas baianos. Não. Caymmi recebe esse prêmio porque ele merece e antes de qualquer político alardear que a Bahia não seria o que é por conta dele, em termos de representatividade cultural para o País, o compositor, que Jorge Amado chamava de “o cantor das graças da Bahia”, há anos já vinha contribuindo para isso sem atravessar nem maltratar ninguém.

Aliás, muito do que foi capitalizado politicamente, nas três últimas décadas, nesta área das artes e da cultura baianas, deve-se mais a seus artistas, escritores e intelectuais, do que propriamente a governantes. O fato de Caymmi não morar na Bahia, não lhe tira a naturalidade baiana, não lhe apaga as memórias da infância e da adolescência tampouco suas afetividades e interações pessoais e coletivas.

Ninguém ousa lhe tirar o que já é próprio de sua experiência cultural e subjetiva, porque, em sã consciência, todo o mundo sabe que é impossível. Talvez seja mais prazeroso, para ele, vir matar a saudade quando pode, do que estar aqui. A volta do filho pródigo à casa dos pais tem um sabor de recomeço, que não é o mesmo da permanência, pois se fosse desta forma, o olhar ficaria acostumado e não veria o diferente, o novo. Ele mesmo disse no documentário feito pela TVE, “Mestre Caymmi da Bahia”, que gostaria de estar agora com 18 anos, para, com o olhar daquela sua idade, ver a Bahia (leia-se Salvador) de agora. Percebam o movimento de ir e vir - de passado-presente-futuro fundidos, mas intrinsecamente separados devido a elementos simbólicos próprios de cada tempo seu - que Caymmi imagina para estar sempre presente na Bahia. É uma concepção de existência de quem só atravessou quase um século de vida tem a autoridade de criar.

O agradecimento silencioso de Caymmi aos aplausos recebidos durante a cerimônia no TCA foi uma das partes mais emocionantes. Sem poder ficar em pé, nem usar sua voz potente, Caymmi usou apenas os olhos para agradecer. Eu, que estava pertinho do palco, tirando as fotos, vi seus olhos cheios de lágrimas. Os meus também estavam.
A benção, Caymmi.

Música é Perfume


Que fragrância tem a voz de Bethânia? Como num efeito sinestésico, de combinação mesmo de sensações diferentes, conseguimos aspirar de seu canto um aroma de buquês... De flores ou de vinhos, não importa, mas, sem dúvida, raro e especial.

No documentário “Maria Bethânia: música é perfume”, entendemos o porquê dessa voz nos envolver tanto... Ouvi-la pela primeira vez é como sentir o cheiro de um perfume. É marcante, impactante, definitivo.

É etéreo, mas palpável, porque suas palavras nos chegam aos ouvidos encorpadas, sólidas... Tudo nos leva a sentir que elas penetram e vibram com uma força inexcedível a nossa memória afetiva. Letra e voz se amoldam perfeitamente.

O que sinto, por exemplo, ao ouvi-la cantar “Bom Dia, Tristeza”, de Vinícius de Moraes e Adoniran Barbosa, é inexplicável, que nem mesmo a letra da canção consegue dar a pista dessa reação tão misteriosa. E não é tristeza, diria, é uma melancolia que não me põe às lágrimas de pesar, mas uma melancolia que remete a uma nostalgia resultado de um momento feliz...

Quando Bethânia canta esta música no filme, ou melhor, quando a cena mostra ela ouvindo a si mesma, com os olhos fechados e acompanhando baixinho, baixinho, em estado de profunda introspecção, me pergunto: “Será que ela mesma está inebriada com o próprio perfume de sua voz?”.

O documentário traz depoimentos do amigo Chico Buarque, do mano Caetano Veloso e da mama Dona Canô. O diretor acompanhou o show “Brasileirinho” e, posteriormente, a produção do cd “Que falta você me faz” e do dvd “Tempo Tempo Tempo Tempo”, inserindo cenas de bastidores e do processo criativo de Bethânia, que de princípio reagiu meio à contragosto ao projeto, porque não se considerava compositora, mas intérprete, por isso não tinha uma obra que fosse interessante o suficiente para se fazer um documentário.

Modéstia à parte, o fato é que o filme comprova o contrário. Bethânia tem, sim, uma obra a partir da ressignificação da criação de outros. Através de sua performance vocal e gestual, a cantora traduz o que Vinícius, Caetano, Chico, Gonzaguinha, Gil e outros tantos compositores criaram. E isso é confessado por ela mesma, quando fala que alguns versos e palavras de canções de Chico foram mudados porque não se amoldavam à sua dicção. Tudo acertado amigavelmente.

George Gachot, franco-suíco, mesmo não sabendo português, confessou ter sido fisgado pela voz de Bethânia, quando a ouviu pela primeira vez em um show na Suíça (Montreaux), e encantado decidiu registrá-la em película, esta tão fina e sensível quanto à dos nossos tímpanos. Algumas cenas foram cortadas porque Bethânia não quis que o diretor mostrasse (quase nada atendida) intimidades suas registradas, como a da comemoração no camarim entre ela, Nana e Miúcha após a gravação da participação das duas no dvd “Brasileirinho”.

Dividi este momento feliz, o de assistir ao filme, com minha amiga Telma, também colega de trabalho. Ela não viu que eu chorava na cena final, quando Bethânia cantava “Melodia Sentimental”, de Heitor Villa Lobos e Dora Vasconcellos, talvez, como eu, estava tão profundamente atenta, tocada e iluminada pela sua voz que, “clara e serena”, vibrava naquele escurinho de cinema. E eu chorava enquanto subiam os créditos...

O título, a propósito, deve ter sido tirado da própria Bethânia, quando em uma declaração sua revela que cantar, que a música é como um perfume... Somente ela mesma para saber o olor (e o valor) de sua voz. Tanto éterea, como eterna, enquanto penetrar e ressoar dentro em mim, dentro em nós...

Carmen


Estou lendo “Carmem”, de Ruy Castro. Uma das biografias mais bem escritas do gênero. Do biógrafo, falo que duas outras obras suas são igualmente maravilhosas. “O anjo pornográfico”, sobre o genial e provocador Nelson Rodrigues, com suas peças e crônicas de humor cáustico, e “Chega de saudade”, sobre a turminha do banquinho e violão, da Bossa Nova e outras bossas.

Dizem que ele ficcionaliza muito, que foge de uma linha mais jornalística para uma narrativa romantizada do biografado, mas como leitor voraz de biografia, penso que ele consegue ser interessante por conta disso mesmo. A leitura corre inteira, sem rodeios nem floreios verbais, porque a linguagem é, antes de tudo, acessível e precisa na narração dos fatos. Não confundir curriculum vitae com biografia. O primeiro, é uma descrição fechada, direta, objetiva e padronizada. Biografia, não. É uma narração. O próprio autor assume que esta é a sua leitura de Carmen, portanto, “uma biografia” e não “a biografia”. Seria presunçoso, Ruy querer ser o último a escrever sobre ela, até porque é impossível enfeixar toda trajetória artística e pessoal de Carmen, mesmo o calhamaço de quase 600 páginas em que ficou o livro. Embora ele tenha escarafunchado tudo acerca da cantora, vazios, dúvidas, intervalos, lacunas, enfim, não-ditos não puderam ser esclarecidos. Talvez fique para uma outra biografia.

Alguém imagina a vida de Carmen Miranda, a “brasileira mais famosa do século XIX”, sem nenhuma historinha que rendesse um fuxico, um babado? A começar pelo fato de ela não ter que revelar sua nacionalidade portuguesa para não atrapalhar a venda de seus primeiros discos, com a antológica marchinha “Taí”, aquela do “eu fiz tudo pra você gostar de mim”.

Sobre isso, inclusive, eu tenho uma opinião, que foi pensada à medida que escrevia a minha dissertação "Acontece que eu sou baiano: memória e identidade cultural no cancioneiro de Dorival Caymmi". Como é sabido, foi a partir de “O que é que a baiana tem?”, de Caymmi, que Carmen se transformou em ícone de uma nacionalidade brasileira inventada e, por conseguinte, de toda a América Latina, num contexto político e cultural do século passado bem específico no Brasil (a instauração do Estado Novo, a consolidação do samba urbano e a popularização do rádio) e nos Estados Unidos (a criação da “Política da Boa Vizinhança”, a industrialização da economia e a produção de filmes de Hollywood). Tudo isso junto, contando ainda com o principal, o talento, mudou a vida e a carreira de Caymmi e Carmen.

A situação de Carmen Miranda era tão delicada em relação à sua nacionalidade que durante toda a sua vida ela não conseguiu naturalizar-se brasileira, embora estivesse bastante integrada ao meio social, artístico e cultural do Rio de Janeiro e, posteriormente, fosse vista no estrangeiro como representante da nacionalidade “verde e amarela”.

Quando voltou de sua primeira viagem aos Estados Unidos em 1940, a cantora se apresentou no Cassino da Urca, mas não agradou a todos. No dia seguinte, os jornais estampavam em suas capas que ela tinha voltado americanizada. Falavam que, como não bastasse ser portuguesa, ela ainda mudou o ritmo do samba para o gosto dos americanos. Argumentavam os críticos mais reticentes que o samba não admitia misturas, tinha de ser puro como os brasileiros estavam acostumados a ouvir, como o que ela mesma cantava antes de virar “Brazilian Bombshell”.

Penso que ao assumir a baiana de Caymmi como imagem de seu novo trabalho, ela não só ascendeu profissionalmente, mas também se tornou simbolicamente em brasileira através de uma tradição cultural que era considerada original e “fonte de legitimação” de uma identidade nacional. Era como se a Bahia desse à artista um passaporte brasileiro que ela nunca teve de fato. A brasilidade idealizada nesse período tinha uma autenticidade que passava pelo samba baiano e pela mulher baiana.

Ainda estou na parte em que ela ainda não se descobriu baiana, ou seja, antes de 1939, quando Caymmi, já instalado na Capital Federal lhe apresenta aquele sambinha cheio de dengo e graça, de balangandãs e pano-da-Costa. Inclusive, a capa da biografia é feita com uma foto de Carmen no melhor estilo turbante, barriguinha de fora, brincos e pulseiras de bolotas e aqueles gestuais e olhares melífluos. Ou existe uma outra imagem que a marcou tanto em nossa memória?

Passagem para Índia







"Passagem para a Índia", filme de David Lean, mesmo diretor de “Lawrence da Arábia”, foi o primeiro filme a que assisti no cinema com minha mãe. Lembro-me que foi no extinto Cine Tamoio, perto da praça Castro Alves e da rua Chile, centro antigo de Salvador. Ainda não sei o porquê de ela ter me levado para assistir, nem ela hoje consegue me responder com precisão.


De qualquer maneira, o filme ficou registrado em minha memória. Deveria ter uns doze anos e, confesso, não entendi muito bem o enredo, mas as cenas exuberantes de um país estranho e exótico me levaram, quatro ou cinco vezes depois, a assistir de novo em vídeo-tape e, nesta última semana, em laser.

O filme é uma adaptação do romance homônimo “Uma passagem para Índia” (A passage to India), de E. M. Forster, escritor inglês do século XIX, autor de mais algumas obras adaptadas para o cinema, como “Maurice” (Maurice) e “Retorno a Howards End” (Howards End). Como crítico literário, escreveu também “Aspectos do romance”, obra sempre referenciada nas disciplinas de teoria literária dos cursos de Letras.

Fiquei estimulado a assisti-lo mais uma vez, quando vi na livraria a nova edição do romance pela editora Globo. Comentei com minha mãe sobre a novidade e deixei entrever na fala o desejo de que gostaria de ganhá-lo no meu aniversário. E ganhei, embora tivesse que trocar, pois comprou um outro livro com título parecido: “Passagem pela Índia”.

O interessante desta nova edição é o prefácio esclarecedor e acertado feito por Sônia Guardini T. Vasconcelos. Com o nome de “O império sobre areia”, a autora abre o caminho para o leitor refletir acerca da narrativa pela qual vai atravessar. São 369 páginas, incluindo um pequeno glossário de palavras anglo-indianas usadas pelo escritor.

A obra deixa aflorar uma crítica ao imperialismo britânico na Índia, mostrando, por conseguinte, as diferenças culturais e identitárias entre uma Índia multiétnica e um Império que não consegue dar conta desta diversidade. Esta dificuldade de entender a Índia, embora Forster seja simpático ao país, é marcante na própria construção ficcional da obra.

Pessoas, lugares, costumes, tudo parece ser incompreensível tanto para o autor, quanto para os personagens estrangeiros residentes e visitantes no país. E este choque cultural, eivado de racismo e preconceitos, é o que dá a tônica das relações entre indianos e britânicos, representados pelos personagens principais Dr. Aziz e Srta. Adela.

Antes desta última vez, assisti em 2004, em João Pessoa, ao filme com Kelvo, meu colega de mestrado em Literatura e Cultura. Estávamos lendo e discutindo nas disciplinas o texto de Edward Said, “Orientalismo”, que trata mesmo desta “fascinação” e “invenção” do Oriente pelo Ocidente, em especial, a partir do contexto anglófono e de seus escritores, intelectuais, cientistas e governantes.

O filme nos ajudou a refletir os argumentos que sorvíamos com prazer do livro de Said, mesmo sabendo que esse estudo só se completaria com a leitura minuciosa da obra de Forster, citado algumas vezes pelo crítico como um dos inventores deste espaço simbólico demarcado como antípoda, como o inverso de um mundo moderno e civilizado.

Literatura e cinema de altíssimo nível de qualidade criativa e estética. Vale a pena ler e assistir. Ou vice-versa.